Bemdito

Quem mandou te matar?

Uma pergunta que move o mar, a morte e a esperança
POR Iana Soares

Uma pergunta que move o mar, a morte e a esperança

Iana Soares
ianascm@gmail.com 

Na ponta do mundo onde moro, observar o mar por algumas horas já foi promessa de paz. Quando precisei estar à beira de mim, fui ao encontro daquela água infinita, diante da qual podia imaginar, mas nunca adivinhar a borda. Ali, com os olhos no movimento repetido e sempre inédito, tentava tornar qualquer dor um pouco menor para fazer caber no corpo. Agora, diante da imensidão do real, não acho palavra. Escrever esta carta, Marielle, é uma pequena estratégia para criar o horizonte que me falta. 

Não estou em silêncio: as coisas estão aqui para serem ditas, mas parece que é impossível cercá-las quando o horror está em volta. No dia 14 de março de 2018, o carro em que você, Anderson e Fernanda estavam recebeu uma rajada de submetralhadora, capaz de disparar 800 tiros por minuto. Quatro balas na tua cabeça, três nas costas de Anderson. Fernanda sobreviveu. Primeiro perguntamos quem matou. Quando o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou Ronie Lessa, o vizinho de Jair Bolsonaro, e Élcio Queiroz como assassinos, passamos a perguntar quem mandou te matar.

Agora, três anos e quatro dias depois, não temos a resposta, mas temos pistas. Enquanto repetimos a pergunta, denunciamos a perda de quase 280 mil brasileiros, vítimas do coronavírus e de um presidente genocida que faz da morte uma política. Bolsonaro chamou de gripezinha, recusou comprar vacinas, não usou máscara, chamou de mimimi aqueles que choram seus mortos, riu de um suicídio, provocou aglomerações. Na terça-feira, 16 de março, morreram 2.842 pessoas e Bolsonaro é incapaz de qualquer gesto de respeito e solidariedade. Como será possível transformar tanta dor? 

Neste instante, vejo Eloah, tua sobrinha, com a blusinha que usavas quando era bebê. Mais de quarenta anos depois, carrega as flores vermelhas bordadas que um dia estiveram contigo. A foto é de Anielle, tua irmã. Marinete, tua mãe, sorri com a menina nos braços. Vejo outra imagem ao lado: Anielle e Luyara, tua filha, em frente à placa que te homenageia. Mulher, preta, favelada, LGBT, defensora dos direitos humanos. Tanta vida. 

Estas duas fotografias são um mar, Marielle. Olho para as imagens e arrisco alguma alegria. Se hoje me falta uma palavra para ir do terror à esperança, estarei atenta ao movimento das ondas. Quero ter fôlego para seguir perguntando: quem mandou te matar, Marielle?

Iana Soares é jornalista e fotógrafa. Está no Instagram.

Iana Soares

Jornalista, fotógrafa e professora, tem mestrado em Criação Artística Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e atualmente coordena o Programa de Fotopoéticas da Escola Porto Iracema das Artes.