Bemdito

Construir cidades LGBTQIA+ para além das cores

Por políticas para a redistribuição do poder simbólico em Fortaleza
POR Rodrigo Iacovini

Por políticas para a redistribuição do poder simbólico em Fortaleza

Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br

Iniciativa da Prefeitura de Fortaleza coloriu, na última semana, três cruzamentos da cidade em alusão à luta do movimento LGBTQIA+. Além de orientar o trânsito, essa sinalização demonstra uma sensibilidade da gestão municipal para o tema, importantíssima em tempos em que a maioria dos governos dá marcha a ré quando o assunto é direitos da população LGBTQIA+.

Para quem ainda vive constantemente com medo de ser quem é ou de demonstrar afeto em espaços públicos, uma intervenção como essa é um verdadeiro afago. É um chocolate quente na manhã fria de uma segunda-feira. O problema é que o chocolate uma hora esfria ou acaba; e somos LGBTQIA+ nos sete dias da semana, não apenas às segundas. O afago precisa virar política. Em outras palavras, para que esta ação não sirva apenas de marketing urbano efêmero e de baixo impacto, deve estar inserida em um processo amplo de redistribuição do poder simbólico emanado pelos monumentos e espaços públicos da cidade. E como a Prefeitura pode impulsionar este processo?

Uma medida que poderia ser adotada, como primeiro passo, é a realização de um mapeamento da representação social consignada nestes espaços e monumentos, a exemplo do que vem fazendo o Instituto Pólis em São Paulo, cuja pesquisa constatou que, dos 367 monumentos identificados na cidade, apenas um retratava mulheres negras, enquanto 137 representam homens brancos. E no caso de Fortaleza, quem está presente nos monumentos públicos? Quem está ausente? Como os presentes estão sendo retratados?

O inventário servirá de subsídio a uma ampla discussão popular sobre que cidade estamos simbolicamente construindo hoje e sobre qual visão futuro gostaríamos que essa dimensão fortalecesse, traçando a partir daí estratégias que reorientem a produção simbólica do espaço urbano. Com base na pactuação de diretrizes claras, poderia ser estabelecido na sequência um processo contínuo e popular de revisão de todo o patrimônio público.

A exemplo do que está ocorrendo em outras cidades e países, isso significaria a retirada ou readequação de homenagens a ditadores, genocidas, torturadores e outros violadores comumente encontrados nos centros urbanos. Por outro lado, isso deve acontecer de forma combinada com a promoção de uma maior presença de grupos até então sub-representados.

Algumas pessoas, com razão, podem levantar a questão do tempo que todo este processo demandaria. Já que a transformação social realmente não ocorre de um dia para o outro, proponho uma iniciativa mais simples e de alto impacto, só para fazer com que a bola continue rolando enquanto planejamos o restante do processo: que tal se a Prefeitura conjuntamente com a Câmara de Vereadores mudassem o nome de alguma grande avenida para Dandara Katheryn? Você sabe quem foi Dandara? Aposto que a maioria dos fortalezenses também não sabe que foi uma travesti brutalmente assassinada na cidade, vítima da transfobia que limita a 35 anos a expectativa de vida da população trans no Brasil.

A homenagem, apoiada por alguns materiais de divulgação, levaria a população a conhecer a história dela e consequentemente o tema da violência transfóbica ganharia outro patamar de visibilidade. Conseguem imaginar o impacto de mudar o nome da Avenida Senador Virgílio Távora – um dos principais apoiadores no Ceará da ditadura militar – para Avenida Dandara Katheryn? Seria ao mesmo tempo uma clara mensagem de defesa da democracia (ao retirar o nome de um apoiador do golpe de 1964) e de apoio à luta pela vida da população trans no Ceará.

Acredito que não esteja pedindo muito. Trata-se apenas do nome de uma avenida em troca do direito a existir e amar plenamente, sem medo. Para alguns, a proposta parecerá absurda e soará como a defesa de algo etéreo, difuso, elusivo. Para quem cotidianamente têm sua existência negada e violada, é muito real, concreto, palpável, já que a disputa simbólica reverbera no plano físico. A pintura das faixas talvez seja a metáfora perfeita para ilustrar isso. As cores nada mais são do que fenômenos ópticos, sequer percebidas por todos da mesma maneira. Ainda assim, estão presentes de uma maneira tão intensa nas nossas vidas que afetam até mesmo a experiência de mundo daqueles que não as enxergam.

Por outro lado, o asfalto, ícone do “progresso” rodoviarista que contaminou as cidades brasileiras no século XX, guarda uma solidez sentida por todos aqueles que já tiveram seus rostos amassados contra ele, especialmente das vítimas de violência em espaços públicos. O asfalto sem a adequada pintura de uma faixa pode significar a morte de um pedestre. Abstrata e concreta: assim é a disputa simbólica em torno das cidades.

Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.