Bemdito

CPI: Culto de Inquérito Parlamentar

Por trás do silêncio de Carlos Wizard, a carga simbólica dos testemunhos e dos tempos cristofascistas
POR Ricardo Evandro

O mórmon e rico empresário Carlos Wizard Martins foi testemunha, na sessão do dia 30 de junho, da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia – a “CPI da Pandemia” ou “CPI da Covid” -, promovida pelo Senado brasileiro. Wizard foi convocado para testemunhar sobre sua suposta participação no “gabinete paralelo” que haveria dentro do Ministério da Saúde.

Basicamente, o “gabinete” seria um grupo de conselheiros e conselheiras de fora da administração pública, supostamente voluntários, supostamente de boa-fé, supostamente sem interesses financeiros, composto por empresários, médicos e políticos, também supostamente interessados em apenas ajudar, gratuitamente, o governo do presidente Jair Bolsonaro, na administração da crise pandêmica da Covid-19.

Talvez haja algo tão bizarro quanto a possibilidade da atual crise sanitária – que até agora já vitimou mais de meio milhão de brasileiros e brasileiras: é o fato de que essa crise pode ter sido liderada, planejada e aconselhada por empresários e por médicos de visão sobre o que é a ciência e a coisa pública, de modo bastante questionável.

Tão bizarro quanto a possibilidade do governo Bolsonaro ter levado a ideia de neoliberalismo a um nível inimaginável – até mesmo para a Escola econômica de Chicago, com esta possível tentativa de terceirização da governança da crise pandêmica -, talvez seja o fato de que também este neoliberalismo bolsonarista tenha mesmo consolidado o processo de evangelização vulgar do espaço público no Brasil.

Não é novidade alguma que o atual governo brasileiro dá continuidade ao fenômeno político, midiático, e também teológico, de avanço das pautas evangélicas, na disputa hegemônico-ideológica sobre a moralidade pública e privada no país. A pesquisa do teólogo e historiador brasileiro Fábio Py tem, há um tempo, mostrado a teologia política de fundo a este fenômeno. Py chegou a publicar um livro sobre o tema, tratando especificamente das vitórias políticas desta frente composta por protestantes tradicionais, pentecostais e católicos conservadores, na disputa teológica na política brasileira recente.

O cristofascismo brasileiro

No seu Pandemia cristofascista (2020), Fábio Py faz uma genealogia do avanço da frente parlamentar evangélica na política brasileira, a qual tem sido a base substancial de apoio político ao governo de Jair Bolsonaro. Já no título de seu livro, Py invoca o termo que recepcionou da teóloga alemã Dorothy Soelle para muito bem caracterizar estes tempos em que vivemos no país: “cristofascismo”. Mas o que isto significa no Brasil pandêmico?

Com base nos textos sobre a ideologia fascista escritos pelo filósofo alemão Walter Benjamin, Fábio Py diz que o fascismo não é mera regressão civilizacional, pois a barbárie fascista “está contida nas próprias condições de reprodução da nossa civilização liberal-burguesa”. Com isto, “a ação fascista se beneficia das concepções conservadoras sobre a moral, a família e o progresso, transformando o todo nacional em um estado de exceção efetivo”.

Assim, também baseado no pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, Fábio Py resume parte do conceito de “cristofascismo” aplicado ao caso brasileiro contemporâneo, ao dizer que este fenômeno político e ideológico “se promove por meio de uma teologia política autoritária”.

Dessa forma, no nosso atual caso de profunda crise brasileira, que não se resta somente a ser política, sendo também absolutamente teológico-política, Fábio Py diz que “o dispositivo autoritário do bolsonarismo se projeta a partir da associação ao religioso, para defender uma concepção simplificada de família para a eliminação de seus adversários, bem como os indesejáveis, neste caso, aqueles que não se adequam ao projeto moral de nação estabelecido”.

E foi neste mesmo sentido que a sessão da CPI com Carlos Wizard se deu. O cristofascismo parece mesmo se desvelar por meio de uma política de morte, com base em pseudociência, em linguagem bíblica. A linguagem política contemporânea no Brasil foi tomada pelas passagens bíblicas em um nível tamanho, que fez com que o Senador Jean Paul Prates (PT-RN) afirmasse, já na última hora da sessão que durou mais de oito horas, que aquela sessão “parecia até um culto”.

Por outro lado, não é nenhuma novidade o fato de que as linguagens político-jurídicas moderna e contemporânea possuem fortes raízes teológicas, bíblicas. E como no fascismo do século XX, a atual política fascista deixa suas raízes teológicas de modo muito evidente. 

Isso pode ser confirmado com base no que já disse o jurista alemão, Carl Schmitt, no seu famoso Teologia política (1922), publicado antes de sua filiação ao partido nazista: “Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados”. 

Neste breve ensaio, no entanto, não tenho como desenvolver mais a teologia política de fundo ao bolsonarismo. Para isto, deixo, fortemente, a indicação do livro de Fábio Py,  Pandemia cristofascista (2020, ed. Editora Recriar). Aqui, neste texto, queria ensaiar apenas uma interpretação das passagens bíblicas citadas durante a sessão de testemunho de Carlos Wizard Martins – lembrando que ele não estava em condição de réu, não ainda, ao menos, vale destacar.

São trechos bíblicos citados pela própria testemunha e também pelos senadores e senadoras, que endossaram a linguagem evangélica daquele dia, talvez por recurso retórico, talvez porque seja este mesmo o espírito do nosso tempo atual brasileiro ou mundial – sendo talvez, simplesmente, aquilo que Benedito Nunes chamou de “tempo do niilismo”.

 Apesar de saber da extrema importância legal-democrática desta CPI por tentar apurar as ilegalidades, as inconstitucionalidades e a falta de ética profissional por parte de empresários, militares, médicos e políticos envolvidos em uma das maiores crises políticas do Brasil, que é a atual crise pandêmica, contudo, preciso destacar que, mesmo assim, tenho “consciência kafikaesque” o bastante para não guardar fetiches sobre a máquina antropogênica do Direito – máquina esta que demanda arrependimento e confissão, reforçando aquilo que Agamben chama de Mysterium burocraticum, tema que já tratei nesta coluna, em O satanismo do Direito.

Muitas passagens foram citadas durante essa sessão da CPI. Até onde pude contar, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) e o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) citaram os livros de Ezequiel, Matheus, Isaías e Provérbios. Mas quero mesmo é lembrar da última citação bíblica daquela sessão.

Após Carlos Wizard Martins ter passado praticamente toda a sessão de seu “testemunho” em silêncio, gozando do direito de não criar provas contra si, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) caracteriza aquele dia de modo muito intrigante: “Já que se falou tanto na Bíblia, e isso aqui hoje parece até um culto [evangélico], eu quero também colocar um versículo da Bíblia, de Provérbios 12: 13-14: ‘O mau se enreda em seu falar pecaminoso, mas o justo não cai nessas dificuldades. Do fruto de sua boca o homem se beneficia, e o trabalho de suas mãos será recompensado.’”; e assim, o Senador Jean Paul Prates finaliza sua intervenção: “falar não incrimina ninguém que esteja de bem com a sua própria atuação”.

Essa passagem salomônica, citada por Jean Paul Prates, traz um tema muito importante para se tentar entender o conceito de Mysterium burocraticum desenvolvido por Agamben. O “mistério” já é um processo, um drama, um contínuo de atos, de falas, de atos-de-fala, que encenam um tema, um enredo. Conforme diz Agamben, em O fogo e o relato (2014): “o processo é um mistério, este é justamente o mistério implacável que enlaça, numa densa rede de gestos, atos e palavras, a culpa e a pena”. E é neste sentido mesmo que o provérbio citado pelo senador petista pode significar: há enredamento, isto é, um enlaçamento, que faz a “rede de gestos” entre a “pessoa má”, “o mau”, com o seu “falar pecaminoso”. 

Desse modo, apesar de estar ainda como “testemunha”, a sessão de Wizard foi uma verdadeira audiência processual no seu sentido ritualístico, material, ou simbólico – pelo menos, em busca de uma “verdade”. Assim como foi o “processo” de Édipo, presidido por ele mesmo, quando a sua cidade, Tebas, era assolada por uma peste, uma epidemia. Seu processo buscava a verdade sobre a qual talvez já sabia – que ele matara seu próprio pai e esposara sua própria mãe –, segundo o texto de Sófocles, em Édipo tirano (427 a.C.).

Por trás do silêncio de Wizard

Mas a outra hipótese que quero trazer aqui, para ensaiar uma leitura possível desta sessão do Senado brasileiro, é a de que não houve exatamente o gozo do direito ao silêncio pelo empresário Wizard. Não estou falando da única vez em que a testemunha respondeu a uma das perguntas colocadas a ele – sobre se Wizard tinha algum interesse empresarial na compra de vacinas pelo governo brasileiro.

Estou me referindo à introdução de sua fala nesta sessão de CPI. Falo da invocação por Carlos Wizard Martins das passagens bíblicas em Josué 24:15 (“Eu e minha casa serviremos ao Senhor”), e em Romanos 1:16 (“Eu não me envergonho do Evangelho de Jesus Cristo, pois ele é o poder para salvação de todo aquele que Nele crê; tanto do judeu, quanto do grego”). Wizard disse, então, que sua família, baseada nessas duas passagens, decidiram que seriam uma família missionária.

A partir de tudo o que foi relatado até aqui, é preciso dizer que o nome de Deus invocado por Carlos Wizard Martins mostra muito bem como a sua presença naquela audiência pública nada teve de silenciosa. Como um mórmon que é, Wizard estava lá mesmo para “testemunhar”, revelando aquilo mesmo, sob mistério absoluto, que o enreda na suspeita gravíssima de ter contribuindo para o genocídio em curso no Brasil. Mas que “testemunho” foi este, sob mistério, que Wizard acabou por dar, mesmo tendo pretendido ficar em silêncio?

Segundo Agamben, “quem, afinal, encontra coragem de falar, tem a consciência de falar – ou, eventualmente, de calar – em nome de um nome que falta”. Pois se falamos ou se nos silenciamos, nós o fazemos porque um nome está sob falta fundamental. E, complementa Agamben, “essa falta de um nome é que torna tão difícil a quem teria algo para dizer tomar a palavra. Só os espertalhões e os tolos falam, e estes falam em nome do mercado, da crise, de pseudociências, de siglas, instituições, partidos e ministérios, frequentemente sem ter nada a dizer” (…); e Agamben completa: “falar – ou se calar – em nome de algo que falta significa sentir e colocar uma exigência. Em sua forma pura, exigência é sempre exigência de um nome ausente. E, inversamente, o nome ausente exige que falemos em seu nome”.

Dessa hermética citação de Agamben, pode-se dizer que, da ausência que nos exige, acabamos, então, por falar justamente neste nome que falta. Mas que nome é este? Wizard fala e depois se silencia em nome de Deus. Sobre isto, sendo verdadeiros, ou não, a sua intenção, seus gestos, a verdade é que falar em nome de Deus – tendo Ele já morrido, ou não, nestes tempos niilistas – é falar em nome da língua.

É o que diz Agamben, quando fala que “segundo os cabalistas, os homens podem falar porque sua língua contém o nome de Deus (‘nome de Deus’ é uma tautologia, porque no judaísmo Deus é o nome o shem há-mephorash).”. Mas, também, pondera Agamben sobre este trecho, “se deixarmos de lado as preocupações cabalistas, poderemos dizer que falar no nome de Deus significa falar em nome da língua”, pois, como disse, “Deus é o nome”, ou como dizia Gershom Sholem, “o nome de Deus é o nome essencial, que constitui a origem de todas as línguas”. 

Assim, o vinculum, o nexus, aquilo que liga, une a culpa e a pena, enreda a fala, e mesmo a falha tentativa de ficar em silêncio na CPI, por Carlos Wizard, é a própria linguagem. Wizard não se manteve em total silêncio. Seu testemunho estava operando pelos seus gestos e pelas citações bíblicas feitas pelo rico empresário brasileiro no início da sessão.

O jovem rico

E, em se tratando de ser um homem rico, também recordo, aqui, da passagem bíblica citada pela senadora Eliziane Gama, do Jovem Rico diante de Jesus. Mesmo tendo obedecido a todos os mandamentos, Jesus disse ao jovem rico, que lhe procurava, que faltava a ele uma coisa: vender tudo o que possuía para dar aos pobres (Matheus 19:16-30 e Lucas 18:18-30).

Mas, quando lembro desta passagem, com isto não estou rogando para que Wizard, um empresário rico, venda tudo, e siga uma vida de imitação de São Francisco. Estou invocando essa citação bíblica, mencionada durante a sessão, para tentar subverter a leitura mais comum destas passagens sobre o Jovem Rico em Matheus e em Lucas.

Meu objetivo final, aqui, é lembrar que o desprendimento pode ser não apenas dos bens materiais, para que se possa ser como os pobres, alcançando-se, assim, a pobreza necessária para se adentrar ao Reino dos Céus – “Então Jesus disse aos discípulos: “Digo-lhes a verdade: Dificilmente um rico entrará no Reino dos céus”, conforme Matheus 19: 24, e Lucas 18:25).

Pode-se, em verdade, viver um outro desprendimento, uma outra pobreza, e talvez por meio de um outro modo de experienciar a linguagem, com a sua fala e o seu silêncio. Encerro, então, este ensaio com um pouco da mística cristã medieval de Mestre Eckhart, nos seus Sermões alemães, quando ele falava sobre a “pobreza interna”, a “pobreza de espírito”: “É pobre aquele que nada quer, que nada sabe e que nada tem”, e “que nada deseja”. Talvez, seja nesta “pobreza”, então, que se poderá encontrar Deus.

Mas tal nível de desprendimento, que vai além do material, também exige uma outra lida com o “nome de Deus”, com a língua. Assim diz o Mestre Eckhart, em outro sermão, “que o excelso ensinamento transmitido nesta vida é o silêncio – que abre espaço para Deus fazer seu trabalho interno na alma”.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.