Bemdito

Entre os mais de 500 mil mortos, quantos trabalhadores invisíveis?

As categorias que não só continuaram os trabalhos presenciais como não foram incluídas em grupos prioritários de vacinação
POR Paulo Carvalho
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Não tem como não ser monotemático. Porque o número sufoca, revolta e parece nos imobilizar. O Brasil ultrapassou os quinhentos mil mortos por Covid-19. E o número tem uma dimensão tão grande, que ele parece nos levar a abstrair a concretude de cada vida perdida com risco até de normalizar uma perda dessa proporção. 

Ao ver esse número, lembro como esse país festivo chora compulsivamente as suas tragédias antes de esquecê-las. A primeira que me recordo, como uma criança que tinha 9 anos, foi o Naufrágio do Bateu Mouche, que vitimou 55 mortos no Réveillon e parou o Brasil na chegada da década de 90.  Os 111 mortos do massacre do Carandiru de 1992, os 42 da explosão do Osasco Plaza, os 99 do acidente com o Fokker 100 da TAM em 1996,  os 199 do acidente de Congonhas em 2007, os 135 da inundação em Santa Catarina em 2008, os 228 do acidente aéreo da Air France em 2009, os 917 e outros muitos desaparecidos no deslizamento no Rio de Janeiro em 2011, os 242 do incêndio da Boate Kiss em 2013, o 259 mortos e 11 desaparecidos na tragédia da Vale em Brumadinho.

Qualquer brasileiro lembra da comoção nacional que esses desastres provocaram. Se somarmos o número de mortos de todas essas tragédias seria menor do que o número de mortes diárias nos picos da pandemia no país. Nem se multiplicássemos por 200 o total de mortos dessas tragédias chegaríamos ao número dos que já se foram em razão da pandemia no Brasil. 

Por mais que tente, não consigo alcançar esses números. Porque tragédias não se comparam. Os números também não confortam a dor de quem passou a ver a cadeira vazia na mesa de almoço do domingo. Essas pessoas costumam ser identificadas pelo que faziam em vida, como se seus trabalhos fossem a sua impressão digital na existência. Se for assim, entre os mais de quinhentos mil mortos, quantos deles eram trabalhadores invisíveis? Quantos deles atravessavam suas vidas na busca de melhoria social através de um trabalho pouco reconhecido?

Esse número esconde nomes que foram despersonificados em vida, pela banalização do reconhecimento social dos seus trabalhos. Há profissões que carregam estigmas de invisibilidade social, sobretudo em países de marca escravocrata como o nosso. A maior parte da mão de obra do Brasil está na informalidade. Durante a pandemia, a maioria dos trabalhadores brasileiros não pôde realizar trabalho remoto. 

Entre os setores de trabalhadores que mais morreram, estão os motoristas de caminhão, faxineiros, vendedores de comércio varejista, porteiros de edifícios, auxiliares de escritório, vigilantes, assistentes administrativos, alimentadores de linha de produção, motoristas de ônibus urbano e serventes de obra, nessa ordem.

Esses dados, extraídos do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), confirmaram que os meses de março e abril deste ano foram os de maior registro de óbitos.  Essas categorias não só continuaram seus trabalhos presenciais como não foram incluídas entre os grupos prioritários de vacinação. Ao mesmo tempo, são essenciais na engrenagem do cotidiano de quem conseguiu aderir ao distanciamento social.

No front do sistema de saúde, lidando diretamente com os contaminados pela Covid-19, estão os maqueiros, motoristas de ambulância, técnicos e auxiliares de enfermagem, de Raio-X ou análise laboratorial, agentes comunitários, recepcionistas, que somam mais de dois milhões de trabalhadores dessa linha de frente. Eles também estão entre os mais de quinhentos mil que partiram.

O Brasil, que não tem nem 3% da população do planeta, mostra o extrato de cerca de 30% das mortes de Covid do mundo. Uma tragédia sanitária e política. Ao atingirmos a marca dilacerante das mais de quinhentas mil vítimas dessa pandemia, lembro-me daqueles corpos invisíveis que lotaram os transportes públicos e estão nessa estatística. Eles não são números. São também retratos da desigualdade da pandemia revelados como uma sombra social pelo mundo do trabalho. Eles foram peças fundamentais e paradoxalmente invisíveis de um sistema doente. Foram substituídos por novos anônimos, herdando a invisibilidade que seus trabalhos carregam.

Paulo Carvalho

Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, coordena o grupo de pesquisa Labuta e é professor de Direito e Processo do Trabalho.