Feminicídios esquecidos
No último dia 01/11, o bar Porão do Alemão, em Manaus, divulgou em seus stories registros das fantasias de Halloween usadas pelos frequentadores da festa temática de dia das bruxas, que acontecia no estabelecimento naquela noite. Dentre as fotos, uma chamou atenção e causou extrema revolta: um homem de costas, vestindo uma camisa de time de futebol e com o nome “Bruno” colado na parte de trás, segurava um saco preto de lixo rotulado com o nome “Eliza”. A foto pode ser vista aqui e segundo a proprietária do estabelecimento, a “polêmica” foi atribuída à inconsequência de um suposto “jovem estagiário” que não conhecia o caso de feminicídio e postou a foto da “fantasia” do cliente.
O assassinato cruel de uma mulher se tornar “inspiração” para uma fantasia de Halloween demonstra de forma muito particular como o Brasil não é capaz de promover memória, verdade e justiça às vítimas de feminicídio e suas famílias. Mas talvez de forma mais emblemática, lembram que casos como o assassinato de Eliza Samúdio e de Eloá Pimentel permanecem sendo consumidos como crimes violentos que permeiam o imaginário e a memória de muitos, mas que não foram ressignificados ao longo do tempo como feminicídios marcantes na história recente do país.
Esses dois casos possuem em comum o aspecto de coadjuvante das vítimas em relação a seus algozes. Eloá, uma adolescente de apenas 15 anos, foi morta por Lindemberg Fernandes Alves em 17 de outubro de 2008, após ser mantida por quase cinco dias em um cárcere privado que mais parecia um reality show: a cobertura excessiva de veículos de comunicação sobre o caso ficou marcada pela defesa de Lindemberg como um jovem de bom coração e apaixonado e pela interlocução direta e ao vivo de apresentadores de várias emissoras com o autor do crime. Ao final, Eloá foi morta sem nunca terem ouvido sua voz.
Eliza foi morta em 2010, depois de ser sequestrada com seu filho de 4 meses, nascido do relacionamento com o jogador de futebol Bruno Fernandes, que se negava a assumir a paternidade da criança, bem como o pagamento da pensão alimentícia determinada pela justiça (e que nunca foi paga, até hoje). O brutal assassinato de Eliza, cujo corpo nunca foi encontrado e a motivação do crime nunca foi inteiramente esclarecida, teve a participação de pelo menos dois policiais ligados a Bruno Fernandes e ganhou um ar “mítico” desumano ao longo dos anos, com videntes tentando adivinhar a localização do corpo da vítima e entrevistas exclusivas com os autores do crime, com a única função foi expor ainda mais uma criança que desde muito cedo teve que lidar com a ausência da mãe.
Apesar de Bruno e Lindemberg podem ter sido condenados e de hoje o tratamento de casos de feminicídio ser bastante diferente, a percepção social sobre esses dois crimes não mudou. Fantasiar-se de um feminicida que carrega o corpo de uma mulher morta em um saco de lixo ainda não é motivo para ser barrado na porta de um bar ou parado na rua. Eloá e Eliza ainda são casos que dão audiência, não uma menina e uma mulher vítimas de feminicídios brutais. Mesmo que se argumente que a lei do feminicídio é posterior a esses casos, ainda é difícil com os olhos de hoje para a maior parte das pessoas reconhecer esses e tantos outros casos de assassinatos como motivados por razões de gênero.
As reflexões sobre a ocorrência e a repercussão desses dois casos precisam levar não apenas a uma resposta mais imediata sobre a apologia ao crime, mas de forma muito mais profunda a dois aspectos da violência de gênero no Brasil: o reconhecimento de que a história do nosso país é uma história de feminicídios socialmente aceitos, validados e consumidos e a necessidade de interpretar assassinatos de mulheres não de forma individual, como “fatalidades” revoltantes e casos isolados semanais, mas como um circuito de violências penosas que marcam a experiência brasileira da desigualdade de gênero. Devemos isso a Eloá e Eliza.