Imposto sobre grandes fortunas: 32 anos de omissão
Na mesma semana em que o Brasil atingiu a triste marca de 500 mil mortes por Covid-19, o ministro Marco Aurélio (STF) votou por reconhecer que o Congresso Nacional foi omisso por não ter instituído até hoje o imposto sobre grandes fortunas (IGF), o que, segundo o ministro, é inconstitucional. A discussão tributária, neste caso – como, aliás, em tantos outros -, deve ser compreendida em um panorama mais amplo que transcende as tecnicalidades do direito tributário e resvala em direitos e garantias fundamentais.
Como destacou Marco Aurélio em seu voto: “a grave e renitente crise econômica revelada pelo déficit persistente das contas públicas dos entes federados, potencializada em decorrência da pandemia covid-19, constitui obstáculo ao cumprimento dos objetivos contidos no artigo 3º da Carta da República.”
Segundo o ministro, o IGF poderia ajudar a “[…] promover a justiça social e moralização das fortunas, amenizando os efeitos nefastos na população mais pobre, além de observar os princípios informadores do sistema tributário nacional, em especial o da capacidade contributiva.” O voto foi tomado na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n.º 55, ajuizada pelo PSOL, no final de 2019, cujo julgamento está previsto para 25 de junho deste ano.
A questão que o STF enfrentará remete à natureza da competência tributária e também ao papel que um imposto como o IGF pode desempenhar na redução das desigualdades.
Uma das funções de uma Constituição — das mais cruciais em federações, como é o caso do Brasil — é dividir o poder (a competência) entre os entes internos. Trata-se de determinar quais “assuntos” ficarão a cargo da União, quais estarão sob responsabilidade dos Estados e quais devem ser atribuídos aos municípios. No caso brasileiro, a Constituição distribui e delimita a competência dos entes federados de forma exaustiva, o que não significa que as normas de distribuição não sejam objeto de questionamentos e dúvidas.
É neste contexto que se dá a distribuição da competência para instituir impostos. A Constituição determinou expressamente quais impostos podem ser criados e cobrados pela União, pelos estados e pelos municípios. A Constituição não institui tributos, apenas prevê quem poderá, por meio de lei, instituir cada uma das espécies tributárias nela previstas. O imposto sobre grandes fortunas, objeto da mencionada ação, é um dos que a Constituição reserva à União.
Dentre os 12 impostos previstos na Constituição, apenas o IGF não foi instituído até hoje. Trata-se de um imposto polêmico. Além da complexidade e das peculiaridades inerentes à espécie, a experiência de países que o instituíram e, posteriormente, revogaram costuma ser invocada para argumentar contra a sua criação no Brasil.
Atualmente, onze países tributam grandes patrimônios, entre eles Argentina, Uruguai e Colômbia. Na Argentina, o imposto, que foi batizado de Aporte Solidário e Extraordinário, foi criado especialmente para ajudar a atenuar os efeitos da pandemia.
Mais de 30 projetos de lei no Congresso
Por aqui, há dezenas de projetos legislativos que propõem a criação do IGF aguardando análise no Congresso Nacional.
A crise econômica e social provocada pela pandemia estimulou a apresentação de novos projetos que foram sendo apensados ao PLP 277/2008. A este projeto, apresentado há 13 anos pela deputada Luciana Genro, somam-se outros 30 que têm o mesmo objetivo.
Segundo o PSOL, que ajuizou a ação que será julgada essa semana, a inércia do Congresso Nacional desrespeita a Constituição. Isto porque uma Constituição como a brasileira estabelece uma série de objetivos que deverá ser realizada pelos entes federados.
A omissão do Congresso, nesse caso, seria inconstitucional, porque impossibilitaria a realização dos objetivos fundamentais da República previstos no artigo 3º da Constituição, entre eles, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais.
No caso da competência para criar tributos, a literatura e os tribunais sempre afirmaram que se trata de uma faculdade. Por esta razão, nenhum ente federado estaria em princípio obrigado a criar os impostos que a Constituição coloca a seu dispor.
Foi o que o STF reafirmou indiretamente na ADI 2.238, ao analisar o artigo 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal — que exige que os entes federados instituam e cobrem todos os impostos de sua competência para que recebam transferências de recursos. O Supremo concluiu que o dispositivo em nada contraria “[…] as características da privatividade, indelegabilidade, incaducabilidade, inalterabilidade, irrenunciabilidade e facultatividade […]”normalmente atribuídas à competência.
Reformulação das competências tributárias
O momento parece propício para reformular a teoria das competências tributárias. Há que se refletir se teorias formuladas sob vigência da Constituição de 67 adequam-se a uma constituição dirigente como a Constituição de 88. Além disso, é necessário considerar que aquilo que é lícito deixar de fazer em contexto de normalidade, pode se tornar insustentável em outro contexto. É justamente esse o caso. A despeito dos inúmeros obstáculos que os detratores do imposto invocam a cada vez que ele volta ao debate público, importantes vozes têm se manifestado pela sua relevância dentro e fora do Brasil.
Qualquer que seja a decisão do STF, a bola estará — como sempre esteve — com o Congresso. Na remota hipótese de o Tribunal acompanhar o voto do ministro Marco Aurélio, o resultado prático será o encaminhamento de notificação ao Congresso, informando-o de sua omissão.
Há quem diga que decisões desta natureza podem constranger o Legislativo. Este efeito político colateral poderia levá-lo a sanar a omissão. A história recente não nos permite ser tão otimistas.
Como qualquer outro dispositivo jurídico, o IGF não é um remédio universal e não será capaz de resolver todos os males do sistema tributário brasileiro. Mas é um instrumento adequado para reduzir a desigualdade, um instrumento que não podemos nos dar ao luxo de dispensar neste momento.