Ler as cidades para mudá-las
Viveremos mal enquanto não universalizarmos essa discussão
Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br
Quando você entendeu o que era cidade? Em que ocasião se deu conta de que estava em uma cidade? Mais importante: já descobriu que a ideia que possui de cidade é limitada, na maioria das vezes, pela sua experiência? Essas e outras questões são centrais para desconstruir o senso comum e reconstruir outras possibilidades para ela. E também para alcançar uma sociedade melhor. Por que então não aprendemos a ler as cidades?
No último final de semana, recebi o convite para conversar sobre o tema com a turma do Centro de Assessoria Jurídica Universitária (CAJU). Há mais de 20 anos, o programa de extensão da Universidade Federal do Ceará promove espaços e processos de reflexão e atuação em direitos humanos, entre eles, o direito à cidade. Integrei o CAJU durante quatro dos 5 anos em que estive na Faculdade de Direito e isso me permitiu vivenciar de fato a cidade.
Não falo por demagogia. Até aquele momento, a minha experiência de cidade se resumia à vida classe média alta proporcionada pela minha família, condicionada ainda ao fato de ser um homem branco, cisgênero e que aparentava ser heterossexual. No período escolar, o foco havia sido a preparação para o vestibular, havia pouco espaço para as grandes questões da vida e do mundo. E quando alguns heróicos professores tentavam colocar tais questões, os adolescentes – eu, inclusive – consideravam perda de tempo ou desdenhavam como uma “viagem” do professor. Cheguei ao curso de Direito convicto de que a diplomacia me esperava, mas com uma visão de mundo tão limitada que hoje entendo perfeitamente como são produzidos Ernestos Araújos da vida.
Na capacitação promovida semestralmente pelo programa, fui questionado pela primeira vez por que parecia natural para mim que tantos espaços ociosos em regiões com boa infraestrutura da cidade abrigassem estacionamentos em vez de moradia para população de baixa renda. Aproveito aqui para publicamente agradecer aos amigos de CAJU que na época tiveram a paciência de estabelecer esse diálogo comigo. Pude me abrir para ler a cidade sob outras lentes, daqueles que vivem a negação cotidiana de direitos.
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra”, afirmava Paulo Freire, e a cidade ocupa um lugar central nesse mundo. Não se trata apenas do lugar físico no qual as relações sociais se desenvolvem, ao contrário, a cidade é simultaneamente produto e mecanismo de reprodução dessas relações. Transformar a sociedade e reduzir as desigualdades passa necessariamente pela transformação das próprias cidades, já que possibilitam ou impedem o acesso dos cidadãos a serviços, benefícios, cultura e até mesmo ao poder. Quando as cidades são refratárias à presença de mulheres e pessoas negras – por meio de mecanismos sociais como o assédio, a violência e o racismo – estão reforçando a exclusão destes grupos dos espaços públicos, entendidos tanto fisicamente (ruas, parques, etc.), quanto simbolicamente (parlamentos, assembleias, etc.).
Apesar de a leitura da cidade ser crucial para a formação de urbanistas, juristas e outros profissionais ligados ao urbano, não pode ser uma discussão restrita a eles. Desde metrópoles a pequenos municípios brasileiros, ninguém possui acesso pleno ao direito à cidade no Brasil. Os impactos das desigualdades urbanas são muito maiores sobre a população pobre, negra, de mulheres, LGBTQIA+; mas, em última instância, o desequilíbrio de nossos centros urbanos impede que qualquer pessoa consiga ter seu direito à cidade efetivamente atendido. Esse tem que ser o ponto de partida de toda nossa leitura sobre o mundo e sobre as cidades, tendo como ponto de chegada o fato de que a cidade apenas será boa para cada um de nós quando for plena para todes, todas, todxs e todos.