Língua: contexto, inclusão e tecnologia
Linguagem é algo importante. No Brasil de hoje, em que aguardamos a nomeação “terrivelmente evangélica” para uma cadeira na Suprema Corte constitucional do País, fazer referência à palavra de Deus virou cool. É um festival de citações bíblicas – fora de contexto, lógico – que faria Jesus, Maria e José corarem de vergonha, tal qual nossos irmãos argentinos em suas naus vindas d’Europa ao ver os selvagens brasileiros. Mas que raios isso tudo tem a ver com tecnologia?, você pode se perguntar. Ao que eu respondo: tudo. E explico.
Uma das primeiras coisas que um cientista da computação aprende na sua formação é a programar. O que para os não iniciados pode parecer um misto de alquimia e magia negra, na verdade, é só mais uma forma de comunicação. A diferença é que, em vez de conversarmos com outro ser humano que fala a nossa língua, estamos dando instruções a máquinas de como fazer algo. E, da mesma forma que preciso usar um idioma que a pessoa com quem eu falo entenda, preciso usar uma linguagem que as máquinas consigam compreender. Esta categoria especial de “idiomas” é chamada de linguagens de programação.
Assim como entre humanos, a comunicação entre pessoas e dispositivos precisa ser capaz de expressar o que é necessário. É função da linguagem – humana ou de programação – transmitir uma ideia de um indivíduo (ou máquina) a outro. Em termos técnicos, chamamos as ideias trocadas nestas conversas de “significado” e as letras, frases, desenhos e outros elementos usados pelas linguagens para transmitir essas ideias de “símbolos”.
Com alguma sorte, estou conseguindo passar para você, pessoa que me lê, o que estou pensando. O meu significado. E isso é possível através dos símbolos que seus olhos estão capturando na tela. Neste ponto, as linguagens humanas levam bastante vantagem. A capacidade de expressão dos idiomas é maior e mais flexível quando comparada com as linguagens de programação, mesmo as mais avançadas. Mas essa vantagem vem com um custo. Quanto maior a expressividade, mais difícil de se comunicar um significado de forma exata. Existem mais elementos para embelezar as mensagens, o que dá margem a interpretações, metáforas e outras figuras de linguagem.
Num artigo recente aqui no Bemdito, Cláudio Sena nos explica que “a linguagem resiste, localiza, identifica, fere, conforta, cura, define o que somos neste mundo e o modo que nos apresentamos socialmente. Mas, para que haja o mínimo de coesão social, nos deparamos com espécies de reguladores, a partir de sistemas incorporados logo pela criança que encontra na escola uma complementaridade ou mesmo oposição ao que se ouve e fala em casa e na rua”.
Nesse contexto, assim como, na linguagem entre humanos, vem crescendo a preocupação em não manter ideias, expressões e termos que tenham a exclusão como plano de fundo, o mundo da computação também vem tentando fazer o mesmo em relação aos símbolos das linguagens de programação e outras ferramentas computacionais.
Um artigo do The New York Times destaca o esforço da Força Tarefa de Engenharia da Internet (IETF, na sigla em inglês) para abolir termos de cunho racista e excludentes do ambiente tecnológico. Alguns exemplos: para fazer com que pessoas de diferentes países tenham acesso mais rápido a determinadas informações, é comum distribuir os bancos de dados em múltiplas regiões do mundo.
Nesse processo, uma das cópias do banco de dados é dita a cópia “mestre”, enquanto as outras são chamadas de “escravos” (master e slave, dos termos em inglês). Se você não quiser receber e-mail de uma determinada pessoa, é possível colocá-la em uma lista negra (ou black list), enquanto para garantir que um e-mail de alguém importante sempre será entregue, você pode por o endereço em uma lista branca (white list).
Muitas empresas importantes do ramo de tecnologia têm comprado esta briga por perceberem a importância simbólica desses ajustes. Afinal de contas, é a partir de símbolos que a computação existe e se sustenta. A equipe técnica do Twitter, por exemplo, se pronunciou publicamente avisando que suas equipes iriam eliminar o uso de alguns termos nos sistemas que gerenciam a rede social.
O W3C, consórcio que regulamenta a web, também publicou uma orientação muito próxima às recomendações do Twitter. Outras gigantes, como Cisco, IBM e Intel juntaram esforços numa organização chamada Iniciativa de Nomenclatura Inclusiva (Inclusive Naming Initiative) para promover o debate e definição de padrões no mundo tecnológico de modo a incentivar termos inclusivos.
É evidente que estas iniciativas, tanto no mundo real quanto virtual, não ocorrem sem resistência, principalmente dos grupos mais conservadores das sociedades. Enquanto alguns desqualificam o trabalho, argumentando que ações desta natureza são preciosismos linguísticos ou sem importância, segmentos mais progressistas comemoram e apoiam o debate.
Nesse sentido, a professora Desirée Cavalcante, em outro artigo do Bemdito, lembra que “a linguagem não é algo marginal ou residual nas nossas construções sociais”. E segue: “Ela (linguagem) pode ser um meio amplo de desconstrução da legitimidade e do reconhecimento de grupos, assim como pode operar como forma de criação de redes de proteção”.
Esse ponto também se aplica às construções tecnológicas, afinal, a tecnologia é um instrumento humano com um propósito fundamentalmente social: melhorar processos e otimizar recursos escassos. É interessante também refletir como a importância em relação à forma com a qual nos comunicamos, além das implicações nos idiomas, nas linguagens de programação e nas ferramentas técnicas, também resvalam na arte, uma outra forma de expressão humana.
A vontade da libertação da opressão, seja física, psicológica ou social, aliás, é bem antiga. O debate público sobre o tema continua relevante. Para quem pensa que este assunto não é relevante, sugiro uma lida no Livro do Êxodo, um livro bíblico importante tanto para cristãos quanto para judeus que conta a história de Moisés e a fundação de Israel. Moisés, vale lembrar, era descendente de Abraão, o primeiro patriarca judeu.
No Êxodo, Moisés abre o Mar Vermelho libertando os judeus cativos e afogando os egípcios opressores. Ao mesmo povo, muitos séculos depois, o próprio Jesus disse: “Se vocês permanecerem firmes na minha palavra, verdadeiramente serão meus discípulos. E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará”. Linguagem e contexto são, mesmo, coisas terrivelmente importantes.