Mistério do processo de Pilatos e Jesus #2
Releitura filosófica do drama da Paixão de Cristo em uma narrativa para além do ritual de sacrifício
Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com
O primeiro texto desta série de dois ensaios sobre o processo de Jesus falava da Paixão como um mistério. Tratei a narrativa do processo de Jesus como o drama de divina tragédia sacrificial, em que seria possível encontrar, via uma possível hermenêutica secularizada, uma situação crítica que, seguindo as intuições de Giorgio Agamben, em Pilatos e Jesus (2013), dois mundos estavam diante um do outro: o mundo terreno, do império humano, presentado por Pôncio Pilatos, e o mundo eterno, divino, presentado por Jesus Cristo, mas numa situação em que nenhum dos dois conseguiria tomar uma decisão sobre o destino do outro, e de si mesmos.
Desse mistério da Paixão, também falei do que chamei de “analogia oposta” entre personagens e situações, demarcando, assim, uma série de dualidades inversamente simétricas: entre os processos de Jesus e o de Pilatos; as duas concepções de verdade entre Pilatos e Jesus; as competências dos processos judaico e romano; entre os dois crimes que teriam sido cometidos por Cristo (blasfêmia e lesa-majestade); entre os dois atos de lavar-se, dos pés de seus seguidores, e das próprias mãos daquele se pensava no poder de julgar, mas não o fez (Pilatos); e entre as três negações de Jesus por Pedro em relação análoga às três afirmações de inocência por Pilatos.
Contudo, proponho, agora, desviar-me da proposta do ensaio anterior. Em vez de uma leitura misteriosa da narrativa da Paixão, enquanto drama de divina tragédia sacrificial, pretendo propor uma outra leitura, uma que tente tratar a Paixão como uma narrativa que supere, ao menos em alguma medida, a sua dimensão ordinária de ritual de sacrifício, de mito sacralizador, permeado de dualidades, de similitudes inversas, de analogias opostas. Além disto, também proponho ler a interpretação de Agamben a partir de outra matriz teórica. Em vez de uma tentativa de hermenêutica secular, agora, proponho a leitura desde a antropologia de René Girard, e de sua famosa teoria mimética.
Revisitando as suas teses publicadas em Coisas ocultas desde a fundação do mundo (1978), no seu texto Teoria mimética e teologia (2001), Girard propõe uma tese ousada: a de que o cristianismo possui uma tensão com a semântica da palavra “sacrifício” e que, por isto, a dimensão mítica dos arcaicos rituais de expiação sofreu uma alteração inovadora. Num movimento em que sua antropologia pôde encontrar a teologia cristã e, com isto, direcionando-se para uma postura apologética, Girard estabelece as seguintes teses centrais: “A teoria mimética mostra que o judeo-cristianismo não é um mito”; e que “(…) a divindade do Cristo não pode vincular-se à sacralização do bode expiatório”.
Mas o que a teoria mimética? E por que a Paixão não se reduz a um mito de sacralização do bode expiatório, como qualquer outro mito arcaico, desde as tragédias gregas até a inúmeras narrativas sacrificiais em tantas culturas diferentes? Como se vê, diferentemente do meu ensaio anterior, este também se propõe a expor a interpretação de Girard, que tenta contestar aquele meu tipo de leitura, o qual vê a Paixão como um drama, uma tragédia de bode expiatório, um mistério processual. E antes de responder a essas perguntas, vale desde já citar o modo como Girard ressalva que não se trata, aqui, de etnocentrismo cristão, uma mera defesa de uma suposta superioridade cultural das práticas de um povo ou de uma cultura sobre as outras. O que o antropólogo propõe é ler a narrativa da Paixão como um chamado para se resistir contra a máquina da violência mimética; um chamado às minorias resistentes, contra a maioria acusadora, produtora de bodes expiatórios de seus próprios crimes para apaziguar seus conflitos internos.
Diz Girard que “as comunidades judaica e cristã não resistem melhor, em conjunto, aos contágios que as comunidades míticas. Só pequenas minorias resistem. Em vez de unânime como nos mitos, a reunião contra as vítimas é somente majoritária. Se a submissão ao mimetismo violento não continuasse a prevalecer, e muito, sobre a resistência, não haveria bode expiatório”. Assim, entendo que Girard está muito mais falando sobre como a ética judaico-cristã propõe uma outra noção de como se lidar com a violência, mas não que isto seja necessariamente cumprido pelos seus crentes. Como sabemos, na história e na política contemporânea, isto está longe de ser verdade. Mas de fato há uma virada da antropologia de Girard ao cristianismo e ao elogio à ética cristã. Mas meu propósito, aqui, é mostrar melhor a tese de Girard e tentar contrapô-la à de Agamben, para que, talvez, possa-se, disto, render alguma leitura outra da Paixão de Cristo, a partir da dialética entre eles.
Para se entender isso melhor, tenho que explicar a base de sua teoria mimética. Em resumo, Girard entende que o desejo humano não é natural. João Cezar de Castro Rocha nos explica bem isso, ao falar que, segundo Girard, nossos desejos sobre um objeto desejado são sempre imitações dos desejos alheios, dos nossos “modelos miméticos”. Eventualmente, devido à escassez de objetos, nossos desejos podem entrar em conflito, e, deste modo, a rivalidade entre os desejantes, que se imitam, conflitariam, gerando violência. E uma violência contagiosa, como a imitação também o é. Sempre que o modelo estiver mais próximo de nossos objetos, saindo de sua mera intermediação virtual, o conflito se torna inevitável e proliferante. Disto, pode-se resultar num grande conflito social, comunitário, tornando o convívio insuportável. Então, como se resolve comumente este estado permanente de violência?
Para Girard, não seria incomum na história humana que essa maioria de pessoas em conflito concentre sobre alguém ou sobre um determinado grupo de pessoas a culpa pela disputa mimética, tornando-os bode expiatório. Na obra de mesmo nome, O bode expiatório (1982), Girard fala sobre como é o “mecanismo persecutório” o modo pelo qual “a angústia e as frustrações coletivas encontram uma satisfação vicária sobre vítimas que facilmente provocam a união contra elas, em virtude de sua pertença a minorias mal integradas, etc.”. E um conhecido exemplo disto pode estar no mito em torno de Édipo, que, segundo Girard, trata-se do “primeiro estereótipo persecutório”.
Assolada por uma epidemia, o oráculo da cidade grega de Tebas afirma que seria necessário expulsar um abominável criminoso, presente entre os tebanos. Como sabemos, Édipo é o tal criminoso, o aparente estrangeiro que depois descobre o que sempre soubera: é o príncipe que matou seu próprio pai e que casou com sua própria mãe, tornando-se rei, e irmão e pai, ao mesmo tempo, de seus filhos. Após um processo liderado por ele mesmo, Édipo, ao “descobrir” sua culpa, é expulso de Tebas, com seus olhos perfurados. Sendo assim, como bode expiatório, por que Édipo seria diferente de Jesus?
Para Girard, diferente do que pensava no início da construção de sua teoria mimética, há sim muitas semelhanças entre os modelos de sacrifício dos mitos arcaicos em relação à Paixão de Cristo. Mas, são essas semelhanças que trilham o caminho para a distinção fundamental: “Os mitos são um reflexo passivo, e o judeo-cristianismo, a revelação ativa da mesma máquina coletiva de fabricar bodes expiatórios, a multidão mimética e violenta”. E como essa revelação ativa se dá? Segundo Girard, “Cristo não pode vincular-se à sacralização do bode expiatório”, pois, enquanto, por um lado, o sacrifício nas religiões arcaicas “é um esforço por renovar os efeitos reconciliatórios da violência unânime substituindo o bode expiatório inicial por uma vítima substituta”, por outro, o sacrifício do Cordeiro de Deus “é para pôr fim a ele ao modo como a teoria mimética permite”.
Dessa oposição, o próprio Girard encontra uma outra simetria – ou, talvez, como eu dizia no ensaio anterior, uma analogia oposta, uma simetria inversa –, que seria aquela entre “a violência das origens humanas e o esquema da redenção cristã”. Para ser mais simples, o que o antropólogo franco-americano propõe é a hipótese de que Cristo é o “sacrifício” que poria fim a todo sacrifício, a todo mecanismo persecutório, de bode expiatório. De acordo com Girard, “Jesus propõe aos homens para escaparem da violência. Ele os convida a cortar pela raiz as rivalidades miméticas. Cada vez que o próximo nos confrontar com exigências excessivas, ou que nos pareçam tais, em vez de pagar na mesma moeda, é preciso evitar desencadear a escalada de violência que conduz direto aos bodes expiatórios”.
Em outros termos, Girard nos diz que o judeo-cristianismo convida as pessoas a encerrarem as disputas, geradas pela aproximação entre os rivais, que se imitam. O imperativo ético, aqui, é o de se “deixar para o rival potencial o objeto do litígio”. E isto é possível por uma outra postura mimética: a da imitação de Cristo. “Em vez de ser ele mesmo outro bode expiatório sacralizado, Cristo se torna bode expiatório para dessacralizar os que vieram antes dele, impedindo que os vierem depois sejam sacralizados”. Para explicar melhor, então, esta outra concepção de sacrifício, Girard recorre a um outro exemplo bíblico, mas, agora, do Antigo Testamento, sobre o caso de um outro processo, o do famoso julgamento de Salomão (1 Reis 3:16-28).
Diante da disputa de duas mulheres sobre a maternidade de uma criança, o rei Salomão propõe um “sacrifício sangrento”: corta-se o bebê ao meio com uma espada, para que cada mulher fique com uma metade. Então, para evitar a morte da criança que seria sacrificada, uma das mulheres cede o bebê à outra, sacrificando a si mesmo, a sua própria maternidade: “Ela renuncia ao objeto da rivalidade. Faz, assim, o que Cristo recomenda, leva a renúncia tão longe quanto possível, porque renuncia ao que uma mãe tem de mais caro, seu próprio filho. Assim como Cristo morre para que a humanidade emerja dos sacrifícios violentos”.
Encerrando esta série de ensaios, com Girard, chego ao fim desse exercício interpretativo, encontrando uma última analogia: entre o processo de Jesus e o processo da mãe que se sacrifica para evitar o “sacrifício sangrento” de seu suposto filho. Salomão é o inverso oposto de Pilatos: um julgador que apresenta duas partes à decisão alheia – Jesus e Barrabás. Contudo, minha hipótese é a de que, no caso da Paixão de Cristo, contrariando a leitura de Agamben sobre o processo de Jesus – mas o mesmo tempo que partindo de alguns de seus pressupostos – defendo que, sim, há uma decisão, aqui. É a decisão do próprio Cristo, quem age sem se defender, age sem agir: entregando a si mesmo ao sacrifício de si, cumprindo o seu destino, num paradoxo insolúvel entre sua liberdade como Homem, que poderia aceitar a intenção de Pilatos em libertá-lo, e a predestinação de ser o Messias, que seria morto, segundo a profecia (Isaías 53:7); mas não para somente apaziguar a violência mimética; e, sim, para servir de modelo, de exemplo, de paradigma que diz às pessoas se entregarem de modo ativo diante da rivalidade mimética, dizendo à violência, à ordem genocida, como diria o personagem de Bartleby, de Herman Melvile: “Eu preferiria não”.
Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.