Nem só de Lula vive o STF
A chamada ‘ADPF das Favelas’, a violência policial e o direito à cidade
Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br
Com menor cobertura pela mídia que o caso de Lula no âmbito da Lava Jato, voltou também à agenda do Supremo Tribunal Federal (STF), na semana passada, a discussão sobre a suspensão de operações policiais em favelas durante a pandemia. A ação – juridicamente, chamada de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ficou conhecida como ADPF das Favelas. Foi movida ainda em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) – ou seja, antes da pandemia – para que fossem “reconhecidas e sanadas as graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição praticadas pelo Estado do Rio de Janeiro na elaboração e implementação de sua política de segurança pública, notadamente no que tange à excessiva e crescente letalidade da atuação policial, voltada sobretudo contra a população pobre e negra de comunidades”.
Se a violência policial há décadas já aterrorizava essa população, o governador Wilson – Mira na cabecinha – Witzel, desde sua campanha e vitória no pleito estadual de 2018, vinha promovendo discursos e editando atos normativos que incitavam um maior uso da violência pelas forças policiais. Em abril de 2020, diante da pandemia, foi reiterado pelos autores o pedido de concessão da medida cautelar, suspendendo então a ação do estado enquanto não chegasse à decisão final do processo.
A ação judicial é apenas uma parte de uma ampla mobilização social em torno da questão. Além do PSB, estão diretamente envolvidas organizações da própria população atingida (como Redes da Maré, Observatório de Favelas, Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Movimento Mães de Manguinhos, dentre outros), centros e laboratórios acadêmicos (como o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) e movimentos e organizações da sociedade civil (como o Movimento Negro Unificado, o Instituto Marielle Franco, a Justiça Global, a Conectas, dentre outros). O envolvimento de tantos atores políticos foi crucial para que o relator acatasse rapidamente o novo pedido de medida cautelar feito em abril e para que ampliasse os efeitos da medida em junho de 2020. A pressão social exercida – observada também através de um forte engajamento nas redes sociais – foi importante ainda para que, em agosto, o plenário do STF formasse maioria pela manutenção da liminar.
A decisão do STF exigia simplesmente a adequação da conduta do Estado do Rio de Janeiro aos parâmetros constitucionais. Se nos primeiros meses isso significou uma expressiva diminuição de mortes causadas por agentes policiais, totalizando 34% de redução em 2020, segundo estudos; superada a comoção social em torno da decisão, o estado passou a sistematicamente desrespeitá-la. Acionado pelos autores da ADPF, o STF solicitou informações dos agentes públicos responsáveis e agendou audiências públicas para poder aferir as medidas adotadas pelo governo do Rio de Janeiro.
As intervenções de representantes da sociedade civil nessas audiências são uma aula para entender o impacto da ação policial sobre a vida nas favelas, o racismo subjacente à violência policial, o significado real da guerra às drogas. No perfil da campanha no Instagram, estão alguns dos trechos mais emblemáticos. Quem ainda não entende por que é falsa a equação “(+) polícia = (+) segurança” deve assistir. Não há segurança em ver sua filha assassinada pela polícia enquanto brincava em sua casa. É impossível falar em segurança quando 79% das pessoas assassinadas pela polícia eram negras. E se você acredita que se trata de um problema apenas da população negra moradora de favela, além de racista, está também se enganando. O seu direito à cidade está intimamente ligado a isso, pode ter certeza. Voltaremos em breve a essa discussão.
Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.