Bemdito

O antifeminismo como bandeira política de mulheres

Movimento que garantiu acesso ao voto e aos cargos eletivos é o mesmo que sofre ataques de mulheres parlamentares
POR Monalisa Torres
Foto: Reprodução YouTube

Contraditoriamente, o movimento que garantiu acesso ao voto e aos cargos eletivos é o mesmo que sofre ataques de mulheres parlamentares

Monalisa Torres
monalisa.torres@uece.br

No romance distópico O conto da Aia, de Margareth Atwood, Gilead é um Estado totalitário fundado sob princípios morais de um fundamentalismo religioso que atribui papéis bem claros para homens e, sobretudo, mulheres. Nessa nova realidade, há o entendimento de que, para o bem coletivo, as mulheres devem abdicar da liberdade (imoral) que possuíam para conhecer a verdadeira “liberdade”, moralmente orientada, na qual elas não precisariam se expor ou sofrer às pressões e violências do mundo.

Proibidas de trabalhar – fora de casa, já que o trabalho doméstico permanece uma tarefa exclusivamente feminina -, ler ou escrever (considerados crimes graves) e de participar das decisões políticas de Gilead, suas funções passam a ser tão somente, numa escala hierárquica, o de esposas obedientes, de doutrinadoras dos fundamentos de Gilead (Tias), de dedicação aos serviços da casa (Marthas) e para fins de reprodução (Aias).

Em Gilead, as pautas do movimento feminista eram consideradas perigosas, porque contrárias à doutrina do novo regime – o que justificava a perseguição às feministas, que eram condenadas a viver (e morrer) em campos de trabalho onde eram expostas a altos níveis de radiação.

Aos homens cabia a tutela das mulheres. Estas, alijadas de seus direitos individuais (tais como são concebidos no liberalismo) e vistas como frágeis e incapazes. Sua liberdade, quando existia algum grau de autonomia, restringia-se à esfera privada, ao espaço familiar. Era lá o único lugar onde a mulher (leia-se, as esposas) sentia-se empoderada, porque “dona da casa” e, mesmo assim, tinha que responder ao seu marido. Em todo caso, estavam sempre sob constante vigilância. Como parte dessa estrutura social, eram ensinadas a vigiarem-se e delatarem-se umas às outras.

A redescoberta desse romance, publicado originalmente em 1985, lançou luz sobre a importância das conquistas e do papel feminino numa sociedade em que o feminismo – como movimento que defende a igualdade entre os gêneros e o empoderamento feminino – está cada vez mais presente nos espaços públicos de debates, e também numa sociedade em que o feminismo sofre, igualmente, os mais severos ataques vindos, inclusive, de mulheres parlamentares, que dizem não dever nada ao movimento quanto ao exercício da representação política.

No século XIX, a Europa presenciou o movimento sufragista, primeira onda do movimento feminista que reivindicou a emancipação feminina. Esse movimento lutou pela emancipação jurídica das mulheres, ou seja, pelo direito ao voto (e a ser votada), à instrução formal e ao trabalho (profissões liberais). Assuntos que Stuart Mill, um dos nomes do liberalismo, já havia discutido em sua obra, A sujeição das mulheres, publicada em 1869.

O direito ao voto veio no início do século XX. No Brasil, isso ocorreria apenas 1932, na Era Vargas.

Na medida em que mais mulheres puderam ter acesso à instrução formal e a espaços antes restritos aos homens, tornaram-se mais politizadas. E o ativismo feminino foi se consolidando e incorporando outras demandas, como o direito ao divórcio e ao próprio corpo.

No mês da mulher, gostaria de aproveitar esse espaço para me deter no que se configurou como uma das maiores conquistas do movimento feminista: os direitos políticos para as mulheres.

Numa democracia liberal, como a nossa o é por definição, votar e ser votado significa ter poder de decisão e ainda a possibilidade de vocalizar e representar demandas de segmentos que, por outros meios, dificilmente seriam ouvidos.

Por isso, me parece no mínimo curioso o fato de candidaturas femininas ou, o que é mais grave, mulheres parlamentares construírem carreiras políticas em cima de um discurso antifeminista.

Ao levantar a bandeira do antifeminismo (numa visão bastante superficial do que seja o movimento e seu legado), parlamentares como a vereadora de Fortaleza, Priscila Costa (PSC-CE), e a deputada estadual Dr. Silvana (PL-CE), ignoram que o movimento feminista foi o responsável pelo direito que elas usufruem de chegar ao poder e de exercerem seus mandatos. É graças às lutas das feministas que elas podem, dentro de suas respectivas casas legislativas, defender pautas conservadoras que lhes são tão caras.

Numa narrativa falaciosa, apontam o cristianismo como o grande baluarte da liberdade feminina. Na mensagem de Cristo, de fato, encontra-se esse lugar especial da mulher (nascido de uma mulher, teve sempre a companhia de algumas e escolheu outra para anunciar sua ressurreição, conforme a narrativa bíblica). Porém, a história do Cristianismo depõe em contrário à afirmação das parlamentares.

O feminismo não diz respeito apenas ao que eu quero (e posso) fazer com meu próprio corpo, nem opõe homens a mulheres numa relação social tecida pelo ódio. O feminismo não é sobre o “desejo de oprimir homens” tampouco sobre “destruir a família”. Pelo contrário, feminismo é um movimento no plano da igualdade e da liberdade. Igualdade entre homens e mulheres (respeitando a alteridade de cada um) e liberdade inclusive para escolher não ser feminista.

O uso político do feminismo para interesses do avanço do conservadorismo, como tem sido feito, dá mostras, ao mesmo tempo, do desconhecimento do que foi e é o seu legado, e de uma certa manipulação dos seus sentidos com o fim de deturpar a mensagem, pondo as mulheres feministas na categoria das aias a serem vilipendiadas.

Viva Gilead! Bendito seja o fruto! Que o Senhor possa…

(Este artigo contou com o olhar cuidadoso e a colaboração do querido amigo Emanuel Freitas)

Monalisa Torres é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) e colunista do Bemdito. Pode ser encontrada no Instagram.

Monalisa Torres

Doutora em Sociologia pela UFC e analista em jornais, integra o projeto "Governos estaduais e as ações de enfrentamento à Covid-19 no país", organizado pela Associação Brasileira de Ciência Política e o jornal O Estado de S. Paulo.