O barulhinho das botas
O que a comunhão com os objetos que adoramos diz sobre nossa presença
Alice Dote
alicedote@gmail.com
Calcei as botas prata, aquelas que namorei muito na vitrine virtual antes de clicar o botão que as traria para casa, numa manhã de sexta-feira – um dia em que o exagero do brilho se justificava. Depois dessa estreia, as calcei mais uma vez na segunda-feira da semana seguinte – também um dia em que o exagero do brilho se justificava –, e uma vez mais na outra, agora em um dia qualquer. As justificativas tornaram-se desnecessárias. Percebi que eu as usaria toda semana, em lugar dos tênis, para as mais especiais ocasiões: trabalhar em um escritório, fazer compras no mercantil da esquina, despachar encomendas pelos Correios.
O que mais chama atenção nas botas prata não é o brilho metalizado. É o barulho que elas produzem – logo, que eu produzo – a cada toque de contato com o chão. É um toc-toc contínuo, ritmado pelos passos, que, ao assim soarem, soam também precisos, decididos, confiantes. Como os passos de quem confere intenção a um dos gestos mais atávicos do ser humano, o de caminhar (mesmo que esse deslocamento seja apenas entre a seção de frutas e a seção de cereais de um supermercado).
Não que eu ande firme assim. Tendo a pisar suave e, seja dito de passagem, me incomodam pisadas que parecem fazer tremer o chão. São esses saltos, saltos baixos e ocos, que, no seu toc-toc inevitável, me conferem essa impressão de mim mesma. A superfície reluzente das botas, na verdade, talvez nem se note – nem todos costumamos direcionar o olhar ao que está no nível do chão, e que pouca importância é conferida, na extensão corporal, aos pés (ainda que mais importância se dê aos calçados que os guardam). Mas, o que dificilmente se consegue ignorar, parece-me, é o barulho ecoado por pés que movem sapatos assim.
Falo de uma peça de vestuário – o que é comumente (e, talvez, limitadamente) associado à esfera das aparências –, mas, curiosamente, falo de algo que se anuncia por outros sentidos para além da suprema visão. É assim, por exemplo, que minha mãe indicia sua passagem por algum lugar: primeiro, lá longe, ouve-se o eco de seus sapatos em contato com o chão, que se amplificam à medida em que ela se aproxima. No corredor de casa, entre uma sala e outra do escritório em que trabalha, seus calçados – principalmente, já percebi, os scarpins – constituem um ruído de sua presença. Pode até haver outras pessoas com sapatos igualmente barulhentos no lugar, mas esses não se confundem com os dela: há, ao menos aos meus ouvidos, um tom particular no toc-toc de seus passos calçados. Também meu pai: seu cheiro chega antes dele, e esse também é o que fica como rastro de sua passagem, mesmo que nem o tenhamos visto. Esses sutis sinais sensíveis da presença de alguém através das coisas (como sapatos ou gotas de perfume), muito pouco indiferentes, que se escolhe carregar junto ao corpo, parecem-me passarem a, de algum modo, fazer parte dele.
Não sei bem em que momento dos últimos anos se iniciou (agora percebo) uma gradativa tentativa de diluir ou dissipar esses pequenos testemunhos (para muitos desimportantes) de minha presença no mundo em comunhão com as “coisas” (também para muitos desimportantes). Parecia-me “demais” fazer-me notar pelo barulho de minhas botas, por exemplo, e, aos poucos, elas foram se deixando em um armário na casa de meus pais, onde ficaram muitas outras dessas coisas que se desencorajaram a estar junto a um corpo que se pretendia cada vez mais silencioso e modesto nas salas onde adentrava. E pisar silenciosamente parece ter sido uma das variadas e (in)conscientes táticas de tentativa de discrição que sobre ele recaíram (e que esmoreceram tantos dos objetos que incorriam no erro de atrair atenção – ou a atenção que eu não desejava atrair).
Foi esse ano, pós-tantas-coisas, que comecei a retomar, um por vez, os pares de botas guardados e empoeirados na casa dos meus pais, na mesma época em que retomei uma miúda extravagância nos passos através das botas prata. Um desses pares, antigas botas vermelhas desbotadas, as superfícies internas de couro se desfazendo, teve seus saltos devidamente consertados, para que continue, numa trajetória que leva já uma década, a ressoar meus passos por aí: anunciá-los, principalmente, para mim, como a me lembrar, apesar do para alguns inconveniente barulhinho toc-toc dos passos, ou justamente por conta dele, da intencionalidade presente nas mais miúdas escolhas ao pisar o mais banal dos dias.
Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.