Bemdito

O disfarce e o átomo

Um impostor desmascarado e um manuscrito escondido no mosteiro apontam para o labirinto em que vivemos e sem o qual nada existe
POR Alan Norões

Um impostor desmascarado e um manuscrito escondido no mosteiro apontam para o labirinto em que vivemos e sem o qual nada existe

Alan Norões
alansnq@gmail.com

Para passar nosso tempo aqui, vou contar duas histórias. A primeira me foi relatada por Natalie Zemon Davis — e, como a toda narrativa surpreendente, repasso adiante sem a autorização dela. No entanto peço, e apenas porque tenho em você inteira confiança, que mantenha a discrição e não divulgue nada do que vai saber a partir de agora. É que se trata de um delicado caso familiar sobre o qual precisarei dar detalhes íntimos dos envolvidos. Por exemplo, o personagem principal, que se chama Martin Guerre e quase não aparece a não ser no início e no final, é sexualmente impotente e precisou de muitos, muitos anos para engravidar a esposa, Bertrand de Rols. Em defesa do rapaz, que, aliás, não precisa de ninguém que lhe proteja, ressalto que o casamento foi arranjado pela família dos dois. Os Guerre eram novos em Artigat, aquela vila no interior da França, quase à beira da Espanha, e careciam de estreitar relações com os estabelecidos do lugar. Negócios. É provável que os jovens, ambos com menos de 18 anos, não se gostassem. De qualquer maneira, a estranheza do casal ainda assim garantiu a manutenção de sua linhagem, depois que uma benzedeira desenfeitiçou o homem e, por que não, também a mulher.

Mas, certo dia, Martin roubou uma parte da colheita familiar, fugiu sem deixar rastro e nunca mais foi visto. O despropósito daquela partida misteriosa fez de Bertrande, cujo colo era ocupado por uma criança pequena, uma mulher abandonada numa sociedade machista e patriarcal. O correr do calendário só reforçava a ideia silenciosa mas conhecida de que aquele sumiço equivalia a um repúdio. Pois, quando todos já davam por certo que ela era viúva, quando a administração das propriedades já era tocada pelos parentes do marido, quando a criança já crescia saudável com o restante dos Rols e dos Guerre, chega uma notícia ao povoado: “Martin está voltando”. Os rumores, vindos de uma estalagem nos arredores, rapidamente se confirmaram. O indivíduo se mostrou arrependido e, de fato, interessado em reparar os problemas causados pelo desaparecimento. Queria, a princípio, retomar o casamento e assim o fez; mais filhos viriam sem demora. Era um imperativo ainda reaver a gestão da fazenda, o que conseguiu sem empecilhos e até com certo êxito; o comércio que travava nas imediações acabou trazendo alguma prosperidade, embora tenha decidido vender uma parte das terras que o pai lhe deixara em testamento. Tudo parecia seguir como sempre, em profunda monotonia. Até que ele resolveu lançar, mais que perguntas, algumas exigências financeiras ao tio Pierre, que desde a alienação do terreno estava ressabiado com o mais novo. O sobrinho queria entender o que havia sido feito dos dividendos gerados ali enquanto esteve fora. Selou-se um racha definitivo, que somente ampliou as suspeitas nutridas há tempos.

A despeito das detalhadas lembranças que Martin provava guardar de todos, Pierre tinha certeza de uma coisa: aquela criatura que se apresentava como filho de seu irmão Sanxi era um farsante. Com a oficialização da denúncia, feita arbitrariamente em nome de Bertrande, a felicidade dos dias se acabou. E em especial para ela, que agora ia perder um casamento verdadeiro e a pessoa que amava. O julgamento que se seguiu revela uma mulher acossada pela sociedade, dúbia nas respostas, enrolada entre as tramas da família e as do amor. Pierre conseguiu ajuntar testemunhas da localidade que corroboravam sua tese. O sapateiro, por exemplo, jurava que o molde dos sapatos era diferente. Em compensação, algumas irmãs tomavam a causa de Martin, que não titubeava quando precisava destacar um diálogo transcorrido há anos ou dar nomes de espanhóis com quem teria convivido no país vizinho durante o período ausente. Cerca de 40 depoentes confirmavam-no como o sujeito que sempre conheceram; outros 40 ou mais lhe negavam essa identidade; mais 60 nem afirmavam que sim, nem argumentavam que não — quem somos nós para dizer algo tão peremptório? No entanto não era possível ignorar algumas das mais contundentes declarações, segundo as quais o agora prisioneiro chamava-se, na verdade, Arnaud du Tilh, um golpista que atuava com o apelido de Pansette. A acareação entre o réu e Bertrande descortinou as sutilezas de um discurso ao mesmo tempo acusatório e protetor. Ela atuava como a mulher enganada que, porém, se negava a fazer um juramento contra o acusado; ele, como o marido de uma pessoa “respeitável e honesta” o qual havia caído numa arapuca armada por todos. Estavam muito bem ensaiados. Em Rieux, entretanto, foi condenado. Na segunda instância, em Toulouse, o processo teria ocorrido como na comarca anterior não fosse por uma ocorrência inesperada. Depois que tudo estava devidamente registrado e faltava apenas a sentença do juiz, as portas do tribunal se abrem, e ouvem-se os tacões de um sapato e as madeiras das muletas batendo contra o assoalho do lugar.

Era o verdadeiro Martin Guerre.

Esse original, exceto por uma perna a menos e algumas escoriações a essa altura totalmente curadas, passava muito bem. Fora durante anos secretário de um clérigo espanhol, lutara no exército nacional inclusive contra a própria França e, por causa disso, ganhara uma posição importante numa ordem de cavaleiros inimiga. As muletas eram castigo das batalhas. Voltou ninguém sabe por quê; mas regressou na hora exata. Talvez a cena cinematográfica do fórum tenha sido um exagero de minha parte. Após tantas linhas o interesse costuma diminuir, e me vali de um recurso barato para que se continue lendo. Vou lançar mão de ainda outro: algo mais inacreditável vai acontecer até o final, porém o previsível vem antes. A cópia não conseguiu sustentar sua versão, embora tenha tentado. A investigação conduzida com o recém-retornado e a enxurrada de testemunhas que referendavam o velho Martin desmascarando Du Tilh foram decisivas para que os julgadores de Toulouse se decidissem pela pena capital. Às vésperas de ser executado, o impostor cansou de disfarçar-se; fez um testamento quitando dívidas, pediu perdão a Jesus Cristo e subiu no cadafalso dizendo palavras favoráveis a Bertrande. Então Pansette foi morto, Bertrande teve mais crianças, Martin depois se casou de novo, Pierre arrumou confusão na justiça com os vizinhos e desde aquele século XVI, quando se deram esses sucessos, o assunto permanece na memória das gerações que vivem na cidade.

Um mistério, contudo, persiste. Aos confessores Du Tilh descartou que tenha conseguido enganar tanta gente por força de feitiçaria, mas pouco mais se sabe como urdiu o plano. Não é absurdo pensar que tenha compartilhado com Martin o flanco espanhol, onde acabou descobrindo a mina de ouro que era a propriedade em Artigat; pode também ter sido avisado por alguém a respeito de uma mulher e sua solidão. O fato é que os detalhes permanecem matéria de conjectura. Porque na vida nem tudo se esclarece, ou melhor, quase nada se elucida a contento; e, mesmo que se prometam acontecimentos grandiosos, às vezes as situações se encerram não com uma explosão, mas com o suspiro encontrado entre as páginas de um livro.

A segunda narrativa é mais breve, mas nem por isso menos impactante. De rerum natura, poema que o romano Tito Lucrécio Caro escreveu no século I a.C. e que impulsionaria o Renascimento mais de um milênio depois, deve ao puro acaso a sua redescoberta e propagação. Na verdade, se quero ser preciso, tenho de me corrigir: o descobridor não foi propriamente a fortuna, mas um sujeito que naquele inverno de 1417 não tinha outra motivação no mundo senão a curiosidade — característica que a Igreja, aliás, considerava pecado. Chamava-se Poggio Bracciolini e, devido à erudição e à excelente caligrafia, prestou serviços como secretário de João XXIII, um papa absolutamente brutal. Quando o pontífice caiu em desgraça tendo até o nome anulado, o copista conseguiu por uma circunstância feliz não ser executado e resolveu, para o bem da literatura, dedicar-se ao que, de fato, mais apreciava na vida. Agora estava ali, diante de um mosteiro no sul da Alemanha, para encontrar qualquer manuscrito antigo, se possível da Antiguidade clássica, que fosse uma preciosidade histórica. Deve ter sido difícil convencer os religiosos de que ele, um leigo, um desgarrado na sociedade da hierarquia, um bibliófilo de interesses seculares, não era efetivamente bibliomante ou feiticeiro, que, por motivos escusos, pedia lhe fosse facultada a entrada na reclusa biblioteca do lugar. Os argumentos, seja lá quais tenham sido, causaram uma impressão decisiva nos dirigentes da congregação. O bibliotecário lhe apresentou a lista de exemplares que talvez há 500 anos não fossem manuseados. Como já se pode imaginar, a organização era mais um amontoado de texto em colunas, e nele constava apenas a primeira linha de cada obra; caso alguma fosse do agrado, mandava-se retirar os pergaminhos da prateleira para consulta, sempre sob o olhar atento do funcionário. Enquanto examinava, o calígrafo se deparou com o seguinte verso: “Ó Vênus criadora, mãe de Enéas e Roma”. Só podia ser aquele poema que divergia de essencialmente tudo o que se havia produzido na Roma antiga. Era ao mesmo tempo cético, pacifista, devotado ao prazer, tão antirreligioso que recendia a ateísmo. Por ter lido boas menções em outros escritores da época, sabia o bibliófilo estar diante de um achado imenso — assim ostentam suas cartas a outros humanistas que, como ele, também entraram no movimento de caça em monastérios a livros esquecidos. Poggio, então, copiou o documento, e a boa nova pôs-se a circular entre a intelectualidade italiana. Isso porque o conteúdo do que Lucrécio afirmava se cercava de intenso interesse.

Num longo poema em seis capítulos, o autor, cuja biografia não preencheria mais que poucos parágrafos, aproveitou a forma versificada para difundir ideias epicuristas acerca do mundo natural; não à toa o título se traduz como Da natureza das coisas. Definamos a obra — que ano passado li com inesperado prazer numa edição norte-americana — como uma espécie de panfleto literário que o talento fez transcender seu objetivo mais imediato. A natureza está descrita ao pormenor, desde mesmo os átomos, e com acertos físicos e químicos inacreditáveis para quem só tinha como ferramenta o pensamento. Mas, entre a formação das nuvens e comentários sobre as doenças do corpo, entre anotações concernentes à óptica e explicações relativas ao som, somos confrontados com reflexões que nos põem diante da morte, da nossa posição minúscula no universo, da transitoriedade do tempo. A visão de Lucrécio é tão desencantada, sugerindo a cada passo que, se existirem, os deuses não têm poder de interferência na vida humana, que suas estrofes se voltam contra si mesmas e ganham uma coloração profundamente elevada; ele enxerga o perigo que há na ideia de eternidade espiritual e nos mostra a beleza de uma existência em plenitude no agora. Quando morrermos, embora nossos sentidos vitais se apaguem como a chama de uma vela, os átomos que nos compõem se juntarão de novo e de novo em outros humanos a nascer, nas águas dos rios que correm ao mar, nas folhas das grandes árvores esverdeando as florestas, no bico dos pássaros, então estaremos, como sempre estivemos, integrados a um planeta do qual somos um pedaço ínfimo circundado por um imenso universo de vácuo e silêncio. Dessa maneira, o obscuro relógio da morte não tem sobre nós qualquer efeito; o fim da angústia não depende de ninguém mais e de nenhum deus, porque está dado desde o princípio; somos a própria matéria de que é feita a vida e, por isso, eternamente parte dela — e tanto devedores ao que nos precedeu quanto responsáveis pelo que se nos seguirá.

Devo ter ainda duas ou três palavras sobre os livros de Natalie Zemon Davis, que redigiu O retorno de Martin Guerre, e Stephen Greenblatt, que publicou A virada transmitindo a aventura de Poggio Bracciolini. Fugiria da minha intenção acrescentar, neste artigo, algo além das próprias histórias que muito me empolgaram. Porém vou fazê-lo porque não gosto de sonegar informações e porque já ficou evidente para quem me lê que, em minha primeira coluna, decidi abordar livros sobre livros. Alguns capítulos de Davis, por exemplo, são dedicados a Jean de Coras, juiz que legou importante resumo do caso numa publicação de 1561 portando título revelador: Arrest Memorable, du Parlement de Tolose, Contenant une histoire prodigieuse, de nostre temps, avec cent belles, & doctes Annotations, de monsieur maistre Jean de Coras, Conseiller en ladite Cour, & rapporteur du proces. Prononcé es Arrestz Generaulx le xii Septembre MDLX. Já Greenblatt, além de expor os instantes decisivos de uma descoberta e compor a paisagem intelectual no Renascimento, realiza uma análise literária de Da natureza das coisas. Em certo sentido, eu diria que são uma espécie muito particular de mise en abyme — quando uma narrativa, como em As mil e uma noites, contém outra e outra numa cadeia infinda —, porque, afinal, esse é o único jeito de compreender e habitar o mundo. Sem o jogo de espelhos em metamorfose que leva de um livro a outro e de uma vida a outra, estaríamos condenados ao peso da imobilidade e, portanto, à total inexistência, presos num tempo a-histórico, destituídos da consciência de um espaço. Mas, como os átomos de Lucrécio e os disfarces de Arnaud du Tilh, leitores estão, ao contrário, numa viagem em direção ao centro de tudo; e, no percurso, formas, vozes, imagens nos dão conta do que encontraremos quando ali chegar.

Alan Norões é escritor e revisor de textos. Publicou Os senhores repararam que a viscondessa de Mataburros é uma porca? (2020). Está no Instagram e no Twitter.

Alan Norões

Escritor e revisor de textos, publicou "Os senhores repararam que a viscondessa de Mataburros é uma porca?" (2020).