Sobre perfeição e fracasso
Como a busca pela perfeição equivale à busca pela eliminação da humanidade
Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com
Em novembro de 1964, Susan Sontag escreveu a seguinte anotação em seu diário: “P: Você sempre tem êxito? R: Sim, tenho êxito trinta por cento do tempo. P: Então você não tem êxito sempre. R: Sim. Ter êxito trinta por cento do tempo é sempre”.
Trata-se de um fragmento que talvez não tivesse significado maior se o leitor não conhecesse a história por trás da mão que o redigiu. Sontag foi uma estrela intelectual de proporções épicas: uma das pensadoras mais agudas de seu tempo, ela elevou o ensaio à categoria de arte, montou Esperando Godot em Sarajevo, em plena Guerra da Bósnia, escreveu sobre HIV, literatura, pornografia, filosofia. Seu biógrafo, Benjamin Moser, afirma que “[…] seu papel nunca voltaria a ser preenchido de modo convincente. Ela criou o molde e depois o quebrou”. Sabendo disto, causa impacto ler Sontag escrevendo em seu diário íntimo que obtinha êxito trinta por cento do tempo. O que subjaz a esta afirmação é o que impressiona – a ideia de que ela fracassava setenta por cento do tempo. Que errava setenta por cento do tempo. Que se equivocava setenta por cento do tempo. A maior parte do tempo.
Parecem ser justo estes setenta por cento que interessam Anelise Chen na concepção de seu romance, fronteiriço com o exercício ensaístico, intitulado Esforços Olímpicos. Lançado no Brasil pela editora Todavia, o livro é narrado do ponto de vista de Athena, uma ex-nadadora profissional, que tenta concluir seu doutorado sobre esportes com todos os prazos estourados. De quebra, um de seus melhores amigos acaba de cometer suicídio. Ela está afundada até o pescoço em letargia, procrastinação, ansiedade e vontade de desistir. Uma história que qualquer pessoa que tenha frequentado um Programa de Pós-Graduação ou assistiu, ou vivenciou. Entre narrativa pessoal e anedotas sobre excepcionalidade esportiva, Chen constrói um interessante mosaico investigativo sobre fracasso.
O original de Esforços Olímpicos é sua oposição à ênfase neoliberal em histórias sobre triunfo, superação e vitória, que ocultam uma busca febril pela eliminação do mal estar, da desistência, do equívoco. Chen demonstra que a meta esportiva é construída a partir de um sentido de sacrifício que procura, por meio da submissão do corpo ao seu próprio limite, aliviar algum medo profundo da impotência humana. Para a autora, está evidente que o esporte captura uma versão de alta contrastividade da angústia humana em torno da morte e da violência. Um atleta vive submerso em dores, lesões, esforços repetitivos, por vezes acidentes que podem levar à morte ou invalidez. Tudo em nome de uma tentativa de comprovar que o ímpeto e a vontade humana são soberanos. Que tudo suportam, com dignidade e abnegação. A narradora de Chen afirma que começou a pesquisar sobre esportes para se salvar do cinismo.
O preço não é barato. Alimentar uma ilusão totalizante de que nenhum obstáculo é intransponível significa mentir para si continuamente e mutilar a própria subjetividade de forma definitiva. Chen retoma o livro Little Girls in Pretty Boxes, de Joan Ryan, para explicar como o impulso de perfeição é incutido em um atleta. O casal de treinadores da ginasta Nadia Comaneci, a primeira a conseguir um dez perfeito, descobriu a fórmula simples e infalível: destrua o senso de autoestima de uma garota de modo que receber a aprovação dos técnicos se torne a única razão para a existência dela. Os danos serão permanentes. Das meninas que Ryan acompanhou, a maioria sofria de depressão, distúrbios alimentares e pensamentos suicidas. A busca pela perfeição humana também é uma busca pela eliminação da humanidade.
Em um determinado ponto, o terapeuta de Athena pergunta: “Qual seria a sensação do fracasso?”. Entre as páginas desconexas da tese e a impressão de que sua pesquisa é uma bomba prestes a explodir, ela responde “Seria como morrer”. “Mas parece que você está bem” ele observa. O que fazer com os setenta por cento restantes (numa estatística sortuda, se você for Susan Sontag)? Parece que resta muito a ser feito. Em carta a Scholem, Walter Benjamin diz que “Para fazer justiça à figura de Kafka na sua pureza e na sua beleza singular, não podemos nunca perder de vista o mais importante: que ele foi alguém que fracassou”. A dor e a desilusão de Kafka, entrevistos em obras como A metamorfose e O processo apresentam-se cristalinas n’A carta ao pai. Somos apresentados a um homem diminuído e assolado pela autoridade paterna tirânica, incapaz de firmar pé diante dos próprios desejos, devastado por sua obediência e tentativa de adequação. E, ainda assim, capaz de produzir literatura luminosa, que comoveria gerações.
Penso no Sísifo de Camus, também citado por Anelise Chen, rolando uma pedra aclive acima, sem encontrar utilidade ou compaixão em sua tarefa. Ainda assim, Camus enxergava na tragédia de Sísifo uma espécie de heroísmo difícil. Do fracasso e da ausência de sentido de rolar continuamente uma pedra, nasce uma luta profunda, suficiente para encher o coração de um homem. Camus parece ter deixado a lição fundamental sobre o fracasso quando proclamou: “É preciso imaginar Sísifo feliz”.
Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.