Bemdito

O jogo das palavras

O uso do político da palavra "genocida" inspira cuidado sob o risco de banalização do termo e, consequentemente, do mal
POR Simone Mayara

O uso do político da palavra “genocida” inspira cuidado sob o risco de banalização do termo e, consequentemente, do mal

Simone Mayara
simonempf@gmail.com

A palavra é a concretização da ideia, a forma como nos expomos para o mundo. Pierre Lévy a explica como uma das formas de virtualização: a palavra virtualiza o que pensamos e também nos permite falar de algo que não está ali.

Imagine o começo da humanidade: a comunicação permitia dizer que ali, depois daquela montanha, havia água, ou que os animais estavam chegando. A comunicação, a palavra, portanto, é fundamental para que convivamos, nos organizemos e continuemos existindo. No livro Homo Sapiens, Yuval Noah Harari chega a dizer que a fofoca é a responsável pela nossa diferenciação. Sim, a comunicação sobre fatos importantes, mas também sobre futilidades, faz criar laços, e laços criam comunidades que colaboram e se protegem… Bem, o resultado dessa fofoca toda somos nós.

Obviamente, há muito mais a dizer sobre a comunicação e sobre as palavras. Mas aqui trago os principais fatos para que possamos entender o jogo. Para isso, preciso de mais um capítulo, mais um dado. A palavra também pode ser instrumentalizada e virar inimiga do indivíduo soberano, induzindo-o a preferir o autoritarismo, segundo Sir Karl Popper. Isso é resultado do que o autor chama de “verbalismo”. Trata-se do uso da língua pomposa e complexa, e ainda de discursos enormes, que não dizem nada ou são feitos de maneira bastante complexa para suscitarem emoções que tiram do racionalismo e desviam dos significados profundos ali. Popper mostra que essa tradição vem de Aristóteles e chega a Hegel. Demonstra ainda como essa prática serviu de base aos autoritarismos terríveis praticados pelos inimigos da sociedade aberta.

Apresentado o jogo, tragos os exemplos que falei lá em cima. O primeiro é uma palavra que deveria ser amarga na boca mas ultimamente virou trending topic: genocida. Genocídio é um crime contra a humanidade definido em Convenção assinada pelas nações em 1948, logo após os horrores da guerra. Segue a definição:

Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional étnico, racial ou religioso, como tal:

a) Matar membros do grupo;

b) Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;

e) Efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

Foi oficialmente criminalizado pela Convenção, mas não faltam relatos históricos anteriores de situações de genocídio. A extensão do terror e também a capacidade de divulgação de imagens fez com que a Segunda Guerra Mundial levasse ao comprometimento das nações para que aquilo não se repetisse. Mas se repetiu. E o genocídio de Ruanda é o exemplo mais forte disso.

Ge-no-cí-dio.

Como essa palavra amarga passou a ser usada hodiernamente? Não deveria. O jogo das palavras começa pela crença de que tudo pode ser relativizado, inclusive pode-se alterar a função e a significação de uma palavra para que sirva a um objetivo, principalmente se esse objetivo for político em um mundo excessivamente politizado. Para isso, posso chamar meu oponente de genocida. Meu vizinho que diz que está preocupado com o negócio dele fechar no meio de uma pandemia é genocida. Posso igualá-lo àqueles que achavam judeus menos humanos. O presidente irresponsável, que está manejando de forma deplorável uma pandemia que tem potencial para ser o pior evento deste século, está igualado aos hutus que pegaram facões, invadiram casas e arrancaram cabeças.

Quem acostumou a repetir esse termo sabe disso? A quem serve a repetição constante dessa palavra tão amarga? Que sociedade teremos com a banalização do mal?

O jogo das palavras coloca uma palavra terrível na boca das pessoas sem que saibam de fato o que estão dizendo. O peso daquilo e é repetida mil vezes até se tornar banal. Nas não deveria. Não se deveria falar em genocídio em cada esquina e dizer que é construção social porque, dentro da comunicação, as palavras expressam a seriedade dos fatos. Quando uma palavra que descreve o absurdo completo é tratada como banal, o absurdo também se torna banal. Hanna Arendt nos relata isso com os olhos de quem viu acontecer. A justificativa da construção social remete muito ao que Popper disse: agregar o termo “social” à desculpa de algo parece justificar aquilo. Quantas vezes, porém, não foi utilizada contra a liberdade? Não justifica, principalmente quando é “social”, mas nada “democrática” – isso porque, especificamente no caso do Brasil, é evidente que tem uso político partidário. E chuto que algo muito próximo aos 100% das pessoas que gritam isso não saberiam explicar de fato o que é.

Se tudo é genocídio, nada é genocídio. O jogo de palavras não pode banalizar o absurdo e se valer das desconstruções para se desfazer de conceitos cristalizados. Já vimos acontecer e, por fim, o que se banaliza é o mal. E isso ninguém quer.

Simone Mayara é Analista Política no Instituto Livre Mercado. Pode ser encontrada no Instagram.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.