Bemdito

O marco de 15 anos da Lei Maria da Penha

Como a violência e os mecanismos para combatê-la se atualizam 15 anos depois
POR Geórgia Oliveira
Foto: Chico Max

No dia 7 de agosto de 2006, uma segunda-feira, uma cerimônia no Palácio do Planalto marcava a sanção presidencial à Lei nº 11.340, destinada a coibir a violência doméstica e familiar que passaria a ser conhecida como Lei Maria da Penha. A comemoração de uma lei que finalmente reconhecesse a existência de um tipo de violência específica contra as mulheres, motivada pela desigualdade de gênero, veio acompanhada de três sentimentos: a satisfação da conquista, a percepção de que esse reconhecimento havia demorado e a consciência de que os desafios à sua implementação eram imensos, inclusive no seio do próprio sistema judicial. 

Foi a Lei Maria da Penha a responsável por difundir, no nosso léxico de valores enquanto sociedade (pelo menos naquele que defendemos oficialmente), a noção de que é errado agredir mulheres. São muitas as críticas à operacionalização dos dispositivos e à falta de investimento suficiente para que todas as políticas públicas acionadas em seu texto sejam efetivadas, mas a legislação é importante enquanto ponto de virada no tratamento social e jurídico da violência de gênero, principalmente daquela cometida no âmbito das relações íntimas e familiares. 

Desde aquele agosto de 2006, percebemos como as violências de gênero e a nossa percepção sobre elas foram atualizadas, com novas formas de cometimento de crimes contra as mulheres e, consequentemente, novas tentativas de atualização dos mecanismos de combate a essas violações, não só no âmbito da Lei Maria da Penha, mas no sistema jurídico como um todo.

Nesse sentido é que se pode compreender a própria tipificação dos crimes de feminicídio, de registro não autorizado da intimidade sexual, da perseguição e da violência psicológica contra a mulher (sobre a qual nos debruçaremos nesta coluna na próxima semana). Além disso, alterações no próprio texto da Lei Maria da Penha, como as que trouxeram a formação de grupos de apoio e acompanhamento, tanto para vítimas quanto para homens autores de violência, e a criminalização do descumprimento de medida protetiva, revelam que os mecanismos previstos originalmente em 2006 continuam passando por reflexões,

Embora a tensão entre a natureza da Lei Maria da Penha, como uma lei de políticas públicas, e a natureza criminal da sua aplicação prática permaneça, o horizonte de possibilidades compreendido no conteúdo da lei completa 15 anos com muito potencial a ser explorado e expandido. Demanda também um novo compromisso com os procedimentos de não revitimização das mulheres em situação de violência por parte de todos aqueles que operacionalizam os mecanismos disponíveis na legislação. 

Não obstante o sistema de justiça tenha sido bastante modificado e adaptado para atender às demandas das vítimas, esse olhar precisa ser corajosamente expandido e compartilhado de forma ainda mais integrada com outras instâncias governamentais. Isso pode ocorrer a partir da percepção de que o circuito de violações que compõem a violência de gênero na vida das mulheres não acontece de forma isolada da situação de violência, desigualdade e vulnerabilidade social que vivenciamos hoje no Brasil. 

O caminho heterogêneo do combate à violência de gênero no Brasil não cabe na retórica comum e desonesta de que “a Lei Maria da Penha não deu conta de resolver a violência doméstica e familiar”. Qual legislação seria capaz de tal façanha? Ao contrário do que essa alegação faz parecer, a Lei Maria da Penha é um marco essencial para as mulheres em um dos países mais violentos do mundo e promoveu avanços notáveis.

A complexidade da violência de gênero enquanto um fenômeno social de muitas facetas – algumas das quais ainda parecemos pouco compreender – impõe pensar nos limites do funcionamento de uma lei que, por melhor aplicada que seja, pode operar apenas mecanismos jurídicos e não milagres.

Nessa perspectiva, resta homenagear a mulher que emprestou seu nome e imagem a um movimento de luta por direitos, celebrar os avanços conquistados e investir em pesquisas, ações e políticas que se inspirem na experiência da Lei Maria da Penha para continuar o enfrentamento à violência de gênero.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.