O medo do cu
Como a privatização do ânus foi uma estratégia que serviu para garantir divisões dos gêneros e dos sexos ao longo da história
Humberto Pinheiro
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Todo começo é uma paródia da própria ideia de começo. Toda ideia de começo, aliás, como toda ideia de fim, é um blefe, é uma política dos sentidos, das ordens, dos afetos. Uma forma de comandar as sensações, os usos, de inventar relações, posições, com seus sujeitos e objetos. Dizer onde começa o que quer que seja é exercer o domínio do limite, das hierarquias, sobretudo quando começar é associado ao elevado, ao alto, altivo, o mais distante do chão possível, como a boca, para nós, está acima do cu, como se por lá começássemos e por este nos rebaixássemos. Inclusive, toda direção e toda medição são também problemas morais. O nosso corpo, a propósito, é feito dessas distribuições de sequências, de coordenadas, linearidades, com seus modos e costumes feitos para cada “parte” desses encadeamentos. Foi também pelo esquadrinhamento moderno das nossas carnes corporais que se construiu uma divisão do público e do privado, com suas legalidades e moralidades próprias. E o cu foi central em tudo isso, muito embora (ou por isso mesmo) investido como exclusão, como apagamento, como interdito, em toda essa epopeia heterossexual do homem branco. Portanto, a brincadeira é maior do que a que aponta o provérbio ibérico que diz que “quem tem cu tem medo”. O buraco não é apenas mais embaixo, mas está em todo lugar.
Por causa do cu, moveu-se uma história, que foi violenta, sanguinária, neurótica, paranoica, com suas divisões desiguais pelas classes e pelas raças. E apesar de o recusarmos como origem, como ascendência, no princípio era mesmo o cu. Como o destino também foi o cu, e não falo aqui do processo digestivo, mas dos “resíduos” da vida social, com e sem trocadilhos. Nas hierarquias das sensações modernas, os lugares raciais e de gênero foram definidos numa fatalidade do ânus, seu hábito lançando a sua sorte, uma ventura, aliás, de quem o possuía ou o pertencia. Dependendo do que se fazia com o cu, houve o degredo, a morte, a prisão. Mas havia também o casamento, a prostituição, a casa, deus, a miséria, a “natureza” e a “contra natureza”. A “sociedade” era inscrita, portanto, nos limites e nas práticas dessas penetrações. Ser homem ou mulher, branco ou negro, esposa ou prostituta, padre ou fiel, patrão ou empregado também se definia nos termos de quem poderia penetrar quem, de quem teria o ânus mais ou menos acessível, e que por uma ou outra destas condições cumpriria um sentido de sujeito, com suas elevações e rebaixamentos. Seria um devotado ou pecador, uma pessoa livre ou criminosa.
Séculos antes do ano de 2003, quando a Suprema Corte norte-americana determinou que nenhum dos seus Estados poderia proibir a “sodomia consentida entre adultos”, os que fossem identificados nesse costume seriam “obrigados a levar, por dois dias, o calçado preso ao pescoço, punição que indica terem eles invertido a ordem natural das coisas, pondo os pés sobre a cabeça”. Nesse intervalo, claro, as punições foram bem mais severas e tantas vezes fatais do que sugere esse estigma quase anedótico. Para a doutrina católica, por exemplo, essa prática não mereceria nada menos do que a fábula da sua divindade tarada fez nas cidades de Sodoma e Gomorra, nada menos do que “terremotos, tempestades, pestes e fomes” até ser “extirpada da face da terra”. E se às vezes as pragas não funcionassem, havia o tempo dos homens, havia os tribunais, como o do Texas, nos Estados Unidos, que em 1998 autorizou a prisão de John Lawrence e Tyron Garner, detidos no apartamento de um deles no momento em que transavam, pelo crime de usar a boca e o ânus no sexo.
A privatização do cu é o nosso paradigma. Sua “retirada” (invenção) do que podemos chamar de “campo social” foi uma forma de marcá-lo como um “fora” das relações de produção e de prazer, como um índice do pior, da descida mais infame, da vergonha mais passiva e abjeta. Esse seu investimento privado é o nosso modelo de cinismo, nosso modo de pensar, fundamento de toda cultura falocêntrica. Como toda propriedade privada é um sequestro do comum, privatizar o ânus foi uma estratégia para garantir algumas divisões, como as dos gêneros e dos sexos, estabilizando uma ordem binária. Porque deixar o cu livre e desimpedido seria provocar um impasse, um “curto-circuito” nessa economia de identidades e de desejos. É também possível pensar numa narrativa do mundo ocidental, ou nesse universo como uma história, redistribuindo os seus orifícios, retomando-os sob outros pontos de vista, mudando suas posições na narração, considerando outros ângulos, como o olho do cu. É interessante imaginar o que mudaria se Aquiles, Hamlet, Robinson Crusoé, Martim Soares Moreno, Basílio, Brás Cubas dessem o cu, se o cu não fosse proibido ou escondido no cânone; se nos imaginássemos ou nos reconhecêssemos para além de um tubo com dois buracos, sendo um deles de onde saem os sinais legítimos da existência pública e o outro apenas o lugar da excreção (e da execração), na medida da masculinidade heteronormativa; se nos representássemos numa inversão desse cano que conecta uma ordem de tagarelice e merda, como num outro discreto charme da nossa cretinice.
Humberto Pinheiro é historiador e desenvolve pesquisa em história da sexualidade.