O negacionismo na segurança pública
Por que a sociedade, os gestores e os políticos ignoram dados sobre a ineficiência de políticas criminais adotadas no Brasil?
Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com
A expressão negacionismo ganhou popularidade desde o início da pandemia para designar aquelas e aqueles que negam a realidade e as evidências científicas que apontam para fatos concretos e verificáveis. São aqueles que ainda apoiam “””””tratamento precoce””””” (sim, com muitas aspas), e que ainda duvidam da necessidade de distanciamento social e da eficácia das vacinas desenvolvidas para a Covid-19. Mas o negacionismo também está presente em uma área do debate público em que as ações políticas são tomadas à revelia das pesquisas realizadas e dos dados apresentados: o campo da segurança pública. Aqui, destaco duas esferas em que a negação dos dados se torna mais evidente: o combate ao tráfico de drogas e o enfrentamento à violência contra as mulheres.
A Lei de Drogas, vigente no Brasil desde 2006, foi responsável por um aumento exorbitante no número de pessoas encarceradas, ao mesmo tempo em que o tráfico de drogas e o crime organizado se expandiram no país. A política proibicionista, de “guerra às drogas”, adotada pelo Brasil e por tantos outros países, mostrou-se ineficaz no combate ao tráfico, mas bastante eficiente na criminalização e no encarceramento desproporcional da população preta e pobre. E enquanto outros lugares do mundo adotam medidas de legalização de algumas drogas , deixando de lado o conservadorismo e regulando um mercado que gera renda e empregos, no Brasil vemos o recrudescimento ainda maior da política de drogas.
Na última semana, foi divulgado o relatório Um tiro no pé: impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e de São Paulo, realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). A pesquisa buscou calcular o custo da aplicação da Lei de Drogas pelas instituições do sistema de justiça criminal, durante o ano de 2017, nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Os números obtidos mostram que os dois estados gastam juntos mais de 5 bilhões de reais apenas com a aplicação da política de drogas, dinheiro suficiente para, além de financiar o funcionamento de centenas de escolas e hospitais, comprar 108 milhões de doses da vacina AstraZeneca.
No campo do enfrentamento à violência de gênero, tivemos nos últimos anos uma tendência de criminalização de condutas como o feminicídio, o descumprimento de meninas protetivas e mais recentemente o stalking, além de inúmeros projetos de lei que visam aumentar ou majorar as penas desses crimes. No entanto, penas mais gravosas não se traduziram na redução dos casos de violência de gênero. Por outro lado, as políticas públicas de prevenção e acolhimento de mulheres vítimas de violência, bem como o orçamento dedicado a essas políticas, pouco cresceu. A ampliação do aparato protetivo esperado a partir da Lei Maria da Penha continua aquém do necessário para lidar com números de violência de gênero que só crescem e atingem desigualmente as mulheres.
O relatório A Dor e a Luta, de iniciativa da Rede Observatórios da Violência e também do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), monitorou casos de violência contra mulheres noticiados por veículos de imprensa durante o ano de 2020 nos estados da Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Os dados coletados pela pesquisa apontam para um cenário extremamente violento e letal para as mulheres, que atinge de forma ainda mais dura aquelas que estão na interseção das opressões, com condição de gênero desrespeitada pela sociedade e pelas autoridades. No Ceará, ganha destaque o alto número de transfeminicídios: durante o ano de 2020, o relatório mapeou 13 assassinatos de mulheres trans e travestis, maior registro dentre os cinco estados monitorados.
Quando questionados sobre esses dados, as autoridades de segurança pública pouco têm a dizer ou negam que os casos estejam relacionados à violência de gênero, muitas vezes falhando até mesmo em adotar o nome utilizado pela vítima, desrespeitando sua identidade de gênero. Mesmo com o número assustador de quatro mulheres trans assassinadas na cidade de Fortaleza em 28 dias, entre julho e agosto de 2020, não houve manifestação por parte das autoridades do executivo, muito menos a articulação de políticas direcionadas especificamente para proteger e prevenir a violência contra essa população.
O caso Keron Ravach, adolescente trans de 13 anos espancada até a morte em janeiro de 2021, no município de Camocim, é um exemplo doloroso desse cenário. A Secretaria de Segurança Pública descartou de pronto “que o ato infracional tenha ocorrido em razão da orientação sexual da vítima”, apesar dos sinais de tortura encontrados no corpo de Keron e de objeções da família e de amigos à versão apresentada pelo acusado, que afirmou que a jovem havia cobrado por um encontro sexual.
As duas pesquisas citadas deixam bastante claro que as instituições de segurança pública padecem de falta de transparência e que existe uma enorme dificuldade no acesso aos dados, apontando também a falta de sistematização das informações já coletadas pelas mesmas instituições. E quando existem dados oriundos de pesquisas que tentam suprir as lacunas existentes e sistematizar a atuação dos órgãos de segurança pública, as evidências e os dados apresentados são desconsiderados pelas autoridades. As políticas criminais que não servem ao combate ao crime ou à prevenção de violências continuam em pleno funcionamento.
O negacionismo permitirá que as drogas continuem vencendo a guerra às drogas todos os anos e que as mulheres continuem sendo vítimas de violência, independentemente do rigor penal.
Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.