O que o brasileiro vê quando se olha no espelho?
“Bye bye, Brasil. A última ficha caiu. Eu penso em vocês night and day. Explica que tá tudo okay. Eu só ando dentro da lei. Eu quero voltar, podes crer. Eu vi um Brasil na tevê…”. Chico Buarque tocava na boleia quando pegamos carona com a Caravana Rolidei. Embarcamos no caminhão, partindo do Espírito Santo, para uma semana de cinema e Brasil profundo.
Enquanto nos ajeitávamos para começar a assistir aos filmes, rabiscamos, com um pedaço de tijolo, o asfalto esburacado do acostamento: clube do filme. Semana 11. 20 de setembro de 2020. Foram sete dias chacoalhando pelas estradas ladeadas ora por pasto magro, ora por colonião viçoso, cor de verde bandeira, que apontando para o sol que fervia descansava com cor de mato os nossos olhos, lacrimejantes de claridade e poeira, depois de tantos filmes já assistidos até aqui.
Primeira parada: 1940. Uma fazenda bonita, mas triste. Com roupas muito brancas hasteadas no varal, feito bandeiras/símbolos de limpeza, respeito, ancestralidade idônea e verdade. Sentamos à sombra frondosa e fresca de árvores tão velhas quanto a própria terra sob nossos pés e, enquanto descansávamos, fomos servidas de pão e vinho por uma das filhas da família de origem libanesa. O patriarca nos olhava de soslaio e de longe. A mãe era invisível. O Brasil, como uma LavourArcaica a perder de vista, tão velha quanto o próprio tempo: no seio de nossa pátria árvore genealógica, assistimos à fé que planta o incesto e os laços de sangue que sangram e tingem as toalhas da mesa e os lençóis da cama. Perseguimos André, o filho epilético e atormentado pelo desejo que sentia por sua irmã, e fugimos com ele – como quem também foge dos olhos de reprovação da própria mãe e das surras do austero pai – em silêncio e sem oração nem despedida.
Segunda parada: Lapa – Rio de Janeiro. Quem despenca do céu e do coro dos anjos encontra remanso e calor ao se desfalecer e regozijar no colo e nos braços de Madame Satã. Não foi difícil achar qual era sua porta: viemos guiadas pelo desejo – como todos em cada casa, cada boate e cada puteiro daquelas ruas. O preto insubordinado, indomável e invencível, que riscou risadas em nossa cara com sua navalha, que serviu orgulho em nossos copos, e que entregou a beleza que se forja como fúria e erupção, nos palcos, nos becos, nas celas e na história. Das ruas, foi muito mais difícil sair do que chegar, e nos estendemos em uma orgia tão atraente quanto trágica, tão incandescente quanto destruidora. Nesse Brasil, os moedores de carne moem gente e saímos, descalças e apressadas, no momento em que as luzes dos últimos letreiros se apagaram – maquiadas por fora, devastadas por dentro.
Última parada: mais cinema, muitas aspirinas e alguns urubus. E foi no meio do sertão que nosso veículo resfolegou duas vezes, tossiu e engasgou com a secura dos galhos e espinhos à beira da estrada e, finalmente, desistiu de continuar. Debaixo do céu e de frente para a tela, passamos a última noite da nossa viagem relatando o Brasil para um gringo. “Não me conte do Brasil, que esse eu conheço bem até demais. Me conte do brasileiro”, disse ele. E o que tiramos de nossas malas e sacolas, cuias, panelas, canecas e bacias, ideias, lembranças, medos e recordações, foi uma história, costurada com três filmes, que saiu amarrada e contada mais ou menos assim:
O brasileiro é a criança que reza o catecismo e se batiza na terra quente. Que abaixa os olhos diante do pai violento, do coronel ambicioso, da igreja que ensina o que a cabeça nunca esquece e que chama de culpa. A criança que ama a mãe violentada. A criança faminta que enfia as mãos na terra pra colher alimento e no próprio corpo pra tirar prazer e sonho. É a criança feita de pasto reprimido e acuado que, quando cresce, vai correndo pelos trilhos do trem explodir na cidade a putaria e a devassidão que faz chorar a mãe misericordiosa e faz rugir o pai temente às escrituras.
O brasileiro é o jovem cansado, que carrega no sobrenome e no próprio sangue as benesses podres recebidas desde as capitanias hereditárias – ou na pele e no próprio suor as cicatrizes das chibatas ancestrais que ainda dividem os membros do seu corpo: mãos para a labuta; ombros para o peso dos funestos camburões negreiros; ventres que ainda não são livres e que dão à luz filhos brancos, pretos e índios – todos eles filhos do Brasil, não importando quantos cânticos os trinetos de Europa ainda insistam em cantar para se esquecerem que nasceram aqui.
O brasileiro é o adulto urbano que só sente a selva em pesadelo. Que nunca plantou uma semente e que só colhe fumaça na cara. Que não entende nada de onça pintada, de Chiquita Bacana, de vidas secas, de menina pobre vendida pra bordel de político, de agro pulp fiction, de reforma agrária. E sem se dar conta, equilibra a vida no cordel do fogo encantado do salário minguado. E sem se envergonhar, dá uma festa à beira mar na cobertura do prédio que foi presente de mui respeitoso rei de Portugal para o seu tataravô. E sem atinar, xinga os quebra-molas das estradas que são feitos de corpos de índios. E sem acordar, não vê que há muito passado que o Brasil é o país de um futuro que nunca chega.
O que o brasileiro vê quando se olha no espelho? Um ponto de interrogação. O que o brasileiro vê na tela do cinema enlatado? Vê um mundo inteiro que não é o seu – e, por isso, é o cinema nacional quem recria nosso próprio leão da Metro Goldwyn Mayer, feito de cangaço, orixás, melado de cana, tecido barato, poeira de asfalto e conchinhas do mar. É tocando a nossa própria cara, e não nosso reflexo ilusório e inventado, que podemos achar e cobrir nossas mazelas envergonhadas com purpurina. O brasileiro traga e bebe. Finge e reza. Ri e chora. E se convence que a vida – a vida é melhor no cinema. A vida é melhor quando a gente canta pra Deus e pendura a dança na conta de Satã.