Bemdito

O reality show que realmente interessa

Na nova atração, precisamos ir além da torcida pela “eliminação” de alguns participantes
POR Rogério Christofoletti
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Na nova atração, precisamos ir além da torcida pela “eliminação” de alguns participantes

Rogério Christofoletti
rogerio.christofoletti@uol.com.br

O Big Brother Brasil 21 terminou e na próxima semana tem a estreia de mais um reality show na TV brasileira. Mas acredite: não é ele que você deve acompanhar, não! A atração mais importante para todos neste país já começou e ela chama CPI da Pandemia. Tem transmissões em tempo real pela televisão e já convulsiona parte da internet. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito que pretende investigar ações e omissões do governo diante da pandemia que já matou mais de 410 mil brasileiros é o reality show que realmente interessa a todos.

Interessa a quem perdeu algum parente ou amigo para a doença porque é mais doloroso ainda aceitar que vidas poderiam ter sido salvas com ações efetivas de combate; interessa aos políticos da oposição que querem desidratar ainda mais o presidente da República; interessa ao Palácio do Planalto que quer empurrar a culpa para governadores e prefeitos; interessa às instituições porque pode ser uma oportunidade de resgate de alguma confiança nesses tempos tão sombrios… Enfim, interessa também ao jornalismo porque é outra chance de ouro para se distanciar da cacofonia ensurdecedora das redes e prestar serviço de esclarecimento e investigação paralela desses episódios que têm tornado nossos dias tão infelizes.

A CPI da Covid começou para valer com o longo depoimento do ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Por mais de sete horas, ele respondeu às perguntas dos senadores e ofereceu farto material para apuração de responsabilidades. Político de profissão e consciente da vitrine que tinha a sua disposição, Mandetta foi comedido em alguns momentos e incisivo em outros, mostrando que o jogo está apenas começando. Hora de apertar os cintos pois vem muita coisa pela frente, como a fala esperada do também ex-ministro Eduardo Pazuello, prevista para ontem, mas adiada por uma inusitada suspeita de Covid.

Se o BBB 21 confinou seus participantes por 100 dias, a CPI da Pandemia tem planos de durar 90, podendo ser prorrogada. Pelas estarrecedoras projeções, o país deve contabilizar meio milhão de mortos até junho, evento que será usado inevitavelmente como nitroglicerina nos debates. Até lá, senadores e assessores vão ouvir testemunhas, preparar acareações, juntar documentos e atribuir papéis na tragédia nacional. No circo montado em torno da CPI, teremos uma cobertura jornalística intensiva, operações coordenadas nas redes sociais, debates públicos acalorados e muitas manobras de lado a lado para desviar a atenção. Tivemos uma pequena amostra disso nesta semana, mas as comoções sociais sobre o massacre em Saudades (SC) e a morte do ator Paulo Gustavo por Covid eclipsaram o efetivo poder que esse reality-show-que-importa tem!

Como já aconteceu em outras CPIs, vamos assistir a senadores jogando pra torcida, com suas perguntas lacradoras, visando repercussão e likes; governistas vão mobilizar as virulentas milícias digitais para subir hashtags e direcionar a gritaria nas redes; parlamentares e repórteres farão tabelinhas trocando informações de bastidores por generosos espaços e protagonismo midiático… uma novidade nesta edição será a força e presença das agências de fact-checking que farão checagens em tempo real, permitindo ajustes de rota das bancadas e desmentidos imediatos. A união de esforços dessas agências e de meios comprometidos com uma cobertura firme e focada pode ser a tal chance de ouro do jornalismo nesses tempos. As redes sociais continuarão ultra-polarizadas, barulhentas e sem qualquer compromisso com a fidelidade dos fatos. O jornalismo terá que se distanciar disso e fazer o que sabe e o que dele se espera. Vai precisar traduzir as tecnicalidades dos depoimentos, sintetizar longas e enfadonhas sessões, cobrir os bate-bocas sem cair em armadilhas diversionistas, e ainda manter o interesse do público.

Talvez este seja o maior desafio dos jornalistas nesta edição do reality: capturar a atenção da audiência quando seus concorrentes são muito mais leves e atraentes… Exaustas de tantas notícias ruins, horrorizadas com as perdas humanas e incrédulas com a demora na vacinação, as pessoas preferem ver algumas subcelebridades passando perrengues em No Limite ou preparando delícias no Master Chef… Os senadores podem até desnudar as estratégias de Bolsonaro, mas nunca terão o apelo de um Largados e Pelados ou de um De Férias com o Ex.

Atrair e manter a atenção do público sobre as investigações é necessário, bem como é fundamental que o povo não fique apenas torcendo pela “eliminação” dos personagens do reality show. É preciso ir além.

É irônico que programas televisivos que se pretendem ser um show de realidade nos transforme quase sempre em meros espectadores de jogos midiaticamente disputados. A vida é mais que uma gincana, e a CPI da Pandemia é uma chance de termos outro tipo de participação social.

Rogério Christofoletti é professor de Jornalismo na UFSC e autor de “A crise do jornalismo tem solução?”. Ele está no Twitter.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).