O STF confirma o que era notório há anos: Moro é suspeito
STF atesta que mais importante do que a prova nos autos é o modo como ela foi produzida
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
Nesta terça-feira, 23, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do habeas corpus em que se discute a suspeição de Sergio Moro nos processos movidos pela Lava Jato em face do ex-presidente Lula. Graças à mudança no voto da ministra Carmen Lúcia, o ex-juiz da 13ª Vara de Curitiba foi considerado suspeito. Isso significa que não só as decisões estão anuladas, como estão imprestáveis todas as provas que foram produzidas nos processos conduzidos por Moro.
Quando o ministro Kássio Nunes Marques terminou de proferir seu voto, afastando a suspeição de Sergio Moro, Gilmar Mendes retomou a palavra para contrapor, ponto por ponto, as inconsistências argumentativas da leitura jurídica de seu colega. Indicado por Bolsonaro para o posto do ministro Celso de Mello, Nunes Marques jogou um banho de água fria no colegiado durante sessão do dia 9 de março ao pedir vistas, inviabilizando a conclusão do julgamento na ocasião. Imaginou-se, com o pedido de vista, que mais um longo intervalo impediria a conclusão da questão. Nunes Marques, no entanto, devolveu rapidamente o processo à pauta.
Gilmar Mendes bateu forte, com a exaltação habitual. Não só indicou as falhas no argumento de seu colega de turma, como a suposta impossibilidade de invocação do HC para questionamento da suspeição ou a preclusão da matéria (!), como chamou Nunes Marques à responsabilidade histórica e política: “o bom ladrão pode se salvar, o juiz covarde não”. Mendes foi no ponto: é sinal de covardia se esconder sob supostas tecnicalidades para se furtar à tarefa de assumir o que é transparente no processo, o juiz foi manifestamente parcial.
Ao contrário do que pareceu, a contundente reação de Gilmar Mendes ao voto de Nunes Marques não foi dirigida ao ministro que acabara de votar, mas a outra colega, que votaria na sequência, Carmen Lúcia. Embora a ministra já houvesse manifestado no passado um voto contra o reconhecimento da suspeição, a divergência aberta por Gilmar Mendes anos depois abriu margem para que Carmen Lúcia pudesse rever seu voto, agora em outro contexto, após todas as consequências políticas da Vaza Jato e da Operação Spoofing. Como já havia sinalizado por sinais sutis, Carmen Lúcia mudou seu voto para declarar a suspeição de Sergio Moro. A maioria em favor da divergência de Gilmar Mendes estava assegurada. Segundo o entendimento de três dos cinco ministros da Segunda Turma, o ex-juiz da 13ª Vara de Curitiba foi parcial, agindo com interesse deliberado de condenar o acusado, com consequências importantes para o processo eleitoral de 2018.
O vencido relator, ministro Edson Fachin, mostrou, de forma confusa e contraditória, sua inconformação: apesar de afirmar categoricamente que conversas entre juiz e acusador sejam ilegais, todos os fatos que foram invocados pela defesa para fundamentar a suspeição de Moro já estavam presentes na peça que formalizou a impetração do habeas corpus. Para Fachin, o tribunal deveria se ater a isso e ignorar mesmo a suposição provável de que as mensagens são, sim, reais. Preocupa-se Fachin: como a amizade entre acusação e julgador levam à suspeição, a decisão que a reconhece para um réu impactará inevitavelmente todos os processos julgados pela 13ª Vara de Curitiba com a participação dos mesmos atores. Seu temor é manifesto, a amizade entre Moro, Dallagnol e cia é uma pá de cal na Lava Jato.
Embora Fachin reforce a dúvida sobre a veracidade das mensagens vazadas, há de se reconhecer que, até o momento, nem a Polícia Federal, nem os envolvidos conseguiram demonstrar sua falsidade. Seria o hacker um tal ficcionista, como disse Gilmar Mendes? Além disso: o que fazer com a gravidade demonstrada pela atitude de interceptar o telefone dos advogados do réu, violando a garantia do sigilo? É notório que, embora não sejam reconhecidas por nenhum dos ministros como prova, as informações reunidas nos vazamentos são fortes e foram determinantes para que Carmen Lúcia revisse sua posição, como quem relê os mesmos fatos a partir de outra perspectiva, ciente de sua obrigação constitucional e institucional.
Um ponto importante deve ser ressaltado no voto do ministro Fachin: a declaração expressa de que se preocupa com os efeitos da decisão sobre os “ganhos institucionais” proporcionados pela Lava Jato. Ou seja: para o ministro, vale a pena manter a validade dos atos praticados por juiz suspeito em favor de uma causa política. Um ativismo que é a principal causa das ameaçadoras nulidades debatidas no habeas corpus julgado pelo Supremo.
O julgamento que hoje se encerra no STF arremata um capítulo importante da história política do Brasil, e põe fim a uma falsa dúvida. Há anos juristas sérios e comprometidos com o devido processo legal vêm indicando as violações sistemáticas à legalidade nos processos que condenaram o ex-presidente Lula. A suspeição de Moro tornou-se despudoradamente manifesta no momento que Jair Bolsonaro o investiu do cargo de Ministro da Justiça. Goste-se ou não do réu, um democrata tem o dever constitucional de permanecer inflexível quanto à obediência das garantias mínimas de qualquer Estado de Direito, como o direito a ser julgado por um juiz imparcial, com a ampla defesa assegurada e o contraditório resguardado. Culpado ou não, Lula não foi julgado de forma justa, e hoje o STF reconheceu isso.
A fragilidade dos votos de Edson Fachin e Nunes Marques é útil para nos mostrar o casuísmo com que Lula é tratado pelo Poder Judiciário. Tanto nas decisões que condenaram e confirmaram a condenação Lula nas três instancias inferiores ao Supremo, como nos votos que não reconheceram a suspeição, influências exteriores pesaram mais do que os argumentos e movimentos do interior dos autos. Votos foram alterados ao sabor da conjuntura, entendimentos jurisprudenciais consolidados foram flexibilizados, o timing foi retardado ou apressado para favorecer determinado efeito sobre o cenário político. Como explicar o movimento de Gilmar Mendes de pautar esse habeas corpus um dia após a decisão surpreendente de Edson Fachin de anular as condenações por incompetência?
Juízes decidiram por força de influências políticas, conjunturais, sob pressão ou inspirados pelo engajamento pessoal em certas causas. Nas sentenças condenatórias, condenou-se porque havia interesse político em condenar. Nos votos que não reconheceram a suspeição, juízes tentaram nos convencer que, apesar da manifesta demonstração da colaboração entre acusação e juiz, de amplo conhecimento público, a sociedade deve fechar os olhos ao que não está no processo e se ater ao formalismo. O ponto fundamental é esse: o formalismo casuístico de parte do Judiciário brasileiro tanto serve para condenar como a inocentar, a depender da ordem do dia, e isso não ruim apenas para Lula, mas para todos nós.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.