Ofélia se levanta das águas
Séculos após Shakespeare, as novas Ofélias do mundo deixam silêncio e palidez para trás, e reivindicam direito à voz
Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com
À memória de Contardo Calligaris.
À minha analista, Camilla Galvão.
Quando Shakespeare escreveu Hamlet, talvez não tenha pensado que, na personagem de Ofélia, estava capturando uma cisão estruturante da identidade tradicional do feminino, ou, ao menos, de um certo feminino. Tratava do conflito entre sustentar o próprio desejo, abraçar a atração por algum tipo de loucura iluminadora, ou sucumbir (e na maioria dos casos não há escolha quanto a isto) aos reclamos das forças sociais atuantes. Sucumbir violentamente. Mortalmente. Como Anne Sexton, Sylvia Plath, Zelda Fitzgerald, Ana Cristina Cesar. É justo este fantasma de uma Ofélia morta que ecoa em toda a construção narrativa de Sua voz dentro de mim, assinado por Emma Forrest e publicado no Brasil pela editora Rocco.
A escrita de Forrest possui a singularidade de deslocar o tom individualista comum da narrativa autobiográfica em direção a um relato comovente sobre o amor e a gratidão que sente por seu terapeuta falecido, referido pelo pseudônimo de Dr. R. Se Shakespeare não calculou a força arquetípica de sua Ofélia afogada, Emma Forrest certamente não é indiferente ao seu magnetismo. Ainda menina, todos os dias depois da escola, Emma se dirigia de bicicleta à Galeria Tate para admirar o quadro de Ofélia pintado por Millais, enquanto comia batatas fritas e chorava. O estado vital de Ofélia variava conforme os humores de Forrest: alguns dias ela lhe parecia morta; em outros, estava ainda moribunda, em vias de ser resgatada; em algumas ocasiões, sua compleição era erótica e os lábios entreabertos, as mãos estendidas, sugeriam a presença de um amante invisível.
A autora alterna sua escrita entre os relatos das sessões de terapia com Dr. R, a transcrição de depoimentos de seu memorial virtual, no qual outros pacientes agradeciam por ele ter-lhes salvado a vida, e a rememoração de alguns dos piores momentos da trajetória dela própria – bulimia, automutilação, abuso sexual, tentativa de suicídio. O Dr. R é descrito por Forrest como um homem judeu de meia idade, aparência austera, suéteres de gola alta, um temperamento “otimista terminal” e uma inteligência capaz de reconhecer quase qualquer referência cultural que ela citasse. O sentido da terapia, dizia Dr. R, era o observador de fora. A pessoa a quem você conta seus segredos porque nunca terá que encará-la na mesa de jantar.
O amor transferencial, colocado em movimento em um setting analítico, é coisa das mais incomuns que presenciei. Só posso falar dele do ponto de vista de uma analisanda. É, ao mesmo tempo, íntimo e impessoal. Profundo e compartimentado. Lembra o amor cotidiano em seu caráter aleatório e imprevisível, mas diferencia-se dele por ser sustentado exclusivamente no discurso. Só isto e tudo isto. Me comove em especial a escrita de uma sessão em que Forrest conta ao terapeuta do fascínio que sente pela citação de J. G. Ballard, “quero esfregar a face humana em seu próprio vômito e obrigá-la a se olhar no espelho”. Ela pergunta, em sequência: “Sou atraída a isso por causa de minha atração pela bulimia, não é?”. Dr. R responde: “Você é atraída a isso por causa de sua atração pela humanidade”.
A citação que tanto a seduz é expressiva. Forrest não só se recusa a fingir que não sente angústia. Ela está interessada em produzir uma exegese da própria dor, uma modalidade de arte que não está em busca de nenhuma propriedade redentora, mas que esbarra nela, por acidente. Revelando sem escrúpulos e sem covardia a face do mal que a atingiu, Forrest empurra o leitor para novas capacidades de sensibilidade e solidariedade “diante da dor dos outros”, para utilizar as palavras de Susan Sontag. Ao partilhar um tipo de conhecimento que só é alcançado pelo sofrimento – um conhecimento venenoso, como a antropóloga Veena Das nomearia – Forrest convida seu cúmplice leitor a sentir a agonia relatada em seu corpo e rompe com a barreira corrosiva de silêncio que persiste em incensar a dor feminina. Ofélia não está mais louca, nem morta. Ela fala. Ela escreve.
Eliane Brum escreveu algumas palavras sobre a imagem de Ofélia em sua reflexão sobre o filme Elena, de Petra Costa. Diz Brum: “São muitas as Ofélias que andam por aí, nas ruas desse mundo […]. Meninas que no vir a ser mulher se afogam no rio de desejos e sensações, de excessos do sentir e do querer. Jovens que submergem nesse feminino perturbador, sem jamais conseguir voltar à superfície”. Desde Hamlet, penso que podemos extrair o aprendizado de que a loucura não é coisa que surge do nada. Ela está intimamente relacionada com a violência e o assujeitamento produzidos pela sociedade envolvente. Punido por sua dissidência, o louco – ou as loucas – é rebaixado à categoria de não pessoa, condenado a habitar as margens, e, em última instância, sequestrado de seu direito à vida.
Por este motivo, gosto tanto da adaptação do clássico shakespeariano produzida por Heiner Müller, intitulada Hamlet-Machine. Em seu texto teatral, Müller nos entrega uma Ofélia não somente com a voz expandida, mas ardendo em fúria: “Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou. A mulher na forca. A mulher com as veias abertas. A mulher com overdose sobre os lábios de neve. A mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu ventre. Destruí os instrumentos do meu cativeiro […]. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim sobre a cama a mesa, sobre a cadeira sobre o chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas ao fogo. Exumo do meu peito o relógio que era meu coração.”.
Não é incomum que psicanalistas ao redor do mundo sejam alvejados pela pergunta – que quase esconde uma afirmação – sobre se Freud, o pai da Psicanálise, era ou não machista. A resposta que ouvi ser repetida como uma cantilena pronta sempre me soou um problema: “Freud não era machista, ele deu voz às histéricas”. Os psicanalistas não estão livres da enunciação do ruído de seus sintomas. Colonialismo, misoginia e poder tutelar me parecem as rubricas desta presunção, a de que é possível “dar voz” a alguém, assim, verticalmente, como uma benesse. Em verdade, se usássemos este termo com honestidade intelectual, seria mais acertado dizer que as histéricas deram voz à Freud – foi por sentar-se e prestar atenção ao que elas diziam que ele pôde inaugurar a prática clínica. Foi o ato de escutar que o tornou um gênio sem precedentes. Em escutar reside sua revolução.
Exercendo a Antropologia há dez anos, entrevejo uma grande dificuldade em torno da audibilidade. O direito à voz é desigualmente distribuído, como o é o dinheiro. Por este motivo, penso no potencial de subversão contido no ato de tentar narrar o inenarrável dos sofrimentos mais radicais. Sylvia Plath escreveu que a exposição de suas feridas era seu grande strip tease. Emma Forrest afirma que sabe que nunca se encaixará e, mesmo assim, continua a escrever. As Ofélias do mundo não estão mais em um rio, cercadas de flores, pálidas, imóveis, silenciosas. Elas têm uma história para contar. Uma nova poética a manifestar. Creio que devemos nos preparar para ouvir.
Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.