Bemdito

Sem dinheiro não tem governo

A falta de ação do Ministério da Economia durante a tramitação do orçamento da União resultou numa peça que inviabiliza o Estado em plena pandemia
POR Wanderley Neves

A falta de ação do Ministério da Economia durante a tramitação do orçamento da União resultou numa peça que inviabiliza o Estado em plena pandemia

Wanderley Neves
nevesn@gmail.com

E o Brasil completa hoje um trimestre sem orçamento da União. Aprovada em 25 de março pelo Congresso, a Lei Orçamentária Anual (LOA) continua na mesa do presidente da República aguardando ser sancionada. A briga de foice já é pública entre o Ministério da Economia, que diz que a lei é inexequível, e os parlamentares que redigiram a peça.

Pelos cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI), assessoria do Senado para o tema, o orçamento como está violaria o teto de gastos imposto pela Emenda 95 em R$ 31,9 bilhões. Ou seja, a simples chancela do presidente poderia resultar em abertura de processo por crime de improbidade administrativa ou mesmo de responsabilidade, mais do que suficiente base legal para um impeachment.

Tentativas grosseiras de maquiagem de dados foram feitas nas últimas semanas de tramitação pelo relator da Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso, senador Márcio Bittar (PSDB-AC), que dessa vez foi longe demais na contabilidade criativa. Há na lei aprovada até mesmo maluquices, como o corte na previsão de despesas obrigatórias.

Ele retirou, por exemplo, R$ 13 bilhões do que seria destinado aos benefícios da Previdência Social, como se aposentadorias e pensões fossem diminuir em 2021, o que nem os mais de 300 mil mortos por Covid seriam capazes de fazer. Mantido assim, o governo simplesmente teria que em algum momento do ano parar de pagar aposentadorias, pensões, seguro-desemprego e outros gastos obrigatórios por falta de autorização.

As manobras fiscais usadas como justificativa para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff são o troco do pão frente a tamanha desestruturação das contas públicas. Tudo feito com anuência dos negociadores do governo, liderados pelos generais-ministros Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto. A fim, a presidente da CMO, deputada Flávia Arruda (PL-DF) – por indicação do presidente da Câmara dos Deputados – foi nomeada ministra da Secretaria de Governo da Presidência nessa segunda-feira (29), data em que os dois generais também foram promovidos.

Em troca da bomba fiscal, o governo entregou a seus aliados no Congresso um aumento nas emendas parlamentares, cuja execução é obrigatória, e na dotação orçamentária dos ministérios da Infraestrutura e do Desenvolvimento Regional, grandes executores de obras. Enquanto isso, o Ministério da Economia olhava de longe para protestar depois do acordo feito; a posição preferida do ex-superministro. Enquanto os egos se batem, a União segue sem orçamento, presente dos autonomeados gênios da eficiência administrativa.

Semana passada, o ministro da Ciência e Tecnologia anunciou uma vacina brasileira contra a Covid-19. Mas, segundo disse ao G1 o coordenador da pesquisa na USP de Ribeirão Preto, Célio Lopes Silva, o início dos teste clínicos “poderia ter adiantado pelo menos uns 3 meses, porque […] se a gente comparar com o desenvolvimento das outras vacinas, nós estamos chegando mais ou menos junto com as grandes empresas internacionais, dos grandes conglomerados farmacêuticos”. O motivo do atraso? O próprio ministério admitiu que se deu pela falta de orçamento.

Noutra ponta, o atual governo tem ainda utilizado os cortes de orçamento como arma de desmonte das estruturas que não podem simplesmente ser extintas. Segundo levantamento da agência Fiquem Sabendo para o projeto Achados e Pedidos, em 2021 o Ministério do Meio Ambiente passou por um corte de 37% em relação ao ano passado; será o menor orçamento desde o ano 2000. No Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), responsável pelas unidades de conservação, a previsão é de um orçamento 46% menor quando comparado a 2020.

Não se pode esquecer que as manifestações de rua mais importantes até agora contra o atual governo ocorreram justamente por questões orçamentárias. Em maio de 2019, centenas de milhares de estudantes foram simultaneamente às ruas em dezenas de cidades para protestar contra os cortes nas despesas discricionárias das instituições federais de ensino impostos pelo Ministério da Educação. Eram tão drásticos que ameaçavam deixar universidades sem dinheiro para pagar sequer a conta de luz em poucos meses. Ao escancarar o desmonte proposto, a mobilização teve inclusive impacto na avaliação do governo em pesquisas de opinião.

Essa enorme confusão resume bem o caos a que o pensamento econômico do governo está levando o País. Sob o estresse de uma pandemia com óbvio choque brusco nas contas do governo, ficaram mais claros os limites do fiscalismo do “liberal brasileiro”, para quem zerar o déficit das contas públicas justifica qualquer coisa, até a venda do Palácio da Alvorada.

Esse pensamento aparece em forma de ectoplasma no jornalismo econômico brasileiro: é “o mercado”, cuja melhor definição deu Elio Gaspari em sua coluna na Folha de S.Paulo: “Em geral vocaliza as opiniões de consultores ou figuras do segundo escalão da banca ou da indústria. Na hora do vamos ver, as guildas do andar de cima gostam mesmo é de ir ao Planalto para bajular o poder.”

Aqui embaixo, enquanto o governo não consegue fazer o mínimo da gestão pública, que já deveria ter sido resolvido no ano passado, o País segue batendo recordes de mortes por covid-19 sem que nenhum real de auxílio emergencial tenha sido pago, sem que nenhuma empresa tenha recebido ajuda para sobreviver às restrições de circulação impostas pela pandemia. A desesperadora falta de senso de urgência frente a pior conjugação de crises desde sabe-se lá quando afunda cada vez mais o País numa crise que tem tudo para ser duradoura.

Wanderley Neves é jornalista. Está no Twitter.

Wanderley Neves

Jornalista especializado em economia e política internacional.