Bemdito

Para que separação de poderes?

A crise brasileira nos convida a refletir sobre o sentido do princípio da separação de poderes e sua importância para o equilíbrio da República
POR Juliana Diniz
Roque Sá/Agência Senado

A crise brasileira nos convida a refletir sobre o sentido do princípio da separação de poderes e sua importância para o equilíbrio da República

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

A instalação da CPI da Covid que se anuncia para esta terça-feira (12), no Senado Federal, desnuda mais um capítulo da crise da separação de poderes no Brasil. A tensão, disseminada pelo sistema político, estressa os três poderes de forma simultânea. Só para mencionar os movimentos mais recentes, temos que a CPI será iniciada graças à determinação do ministro Luís Roberto Barroso, em resposta à omissão de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Congresso Nacional; o Executivo, por sua vez, segue empenhado em estimular a abertura de processo de impeachment contra juízes da corte constitucional, tudo permeado a hostilidades que vão e vêm via redes sociais, notas oficiais e declarações à imprensa.

A compreensão da crise passa pelo enfrentamento de uma pergunta: afinal, qual o sentido da separação de poderes e quais os principais riscos de violações sistemáticas a esse princípio?

Poucos postulados estão tão intimamente ligados ao Estado Democrático de Direito e são tão mal compreendidos quanto a máxima da separação de poderes. Desenvolvido pelo ideário do liberalismo político do século XVIII, o princípio se insere numa complexa arquitetura institucional voltada ao controle do abuso do poder. O burguês oitocentista é um ser atemorizado pela lembrança do absolutismo monárquico, esse Leviatã cuja cabeça precisou ser decepada pela guilhotina da revolução. Conter os braços do Estado e direcioná-lo para garantia da liberdade é a tarefa a que se dedica o constitucionalismo que nasce dos processos revolucionários do século XVIII. 

Segundo essa lógica, o melhor caminho para evitar o arbítrio é separar as funções básicas do Estado em instituições diversas. É assim nasce a separação de poderes como uma das garantias básicas do indivíduo – uma técnica de contenção do poder tão importante que mereceu previsão expressa no artigo XVI da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Ao Legislativo caberia a função típica de produzir as normas responsáveis pela organização da sociedade, ao Executivo o papel de alocar recursos e executar políticas públicas e ao Judiciário o papel de pacificar conflitos sobre aplicação da lei, funcionando como espaço para condução civilizada de controvérsias entre pessoas e também entre instituições. Previsto na primeira constituição republicana da França, em 1791, o princípio tem se mostrado resistente, estando presente nas ordens constitucionais democráticas de todo o Ocidente até hoje. 

Só uma leitura equivocada do princípio levaria à conclusão de que a independência significa autorização para agir sem limites ou constrangimentos. Isso porque a separação de poderes convive com um sistema de pesos e contrapesos em que um poder tem determinadas atribuições de controle a serem exercidas para manter o outro poder na linha. É por isso que um ministro do Supremo Tribunal Federal pode definir que o Senado Federal promova a abertura da CPI – porque o Direito assegura que parlamentares lesados pela omissão do presidente da casa legislativa possam recorrer ao Judiciário para fazer valer seu direito de investigar.

O Brasil de 2021 nos convida a refletir sobre o princípio da separação de poderes por duas grandes razões: o comportamento do presidente da República e a desorganização do sistema político que o empossou em 2019. Embora boa parte da responsabilidade da crise intersinstitucional esteja na conta de Jair Bolsonaro, é certo que sua chegada ao posto mais alto do Executivo nacional só pode ser explicada por um longo histórico de violações aos procedimentos e limites previstos na Constituição que é anterior à sua chegada ao poder.

Desde que foi eleito, Bolsonaro convida os demais poderes à tarefa árdua de domesticá-lo. O presidente viola de forma sistemática a lei e a constituição, buscou (e, em muitos casos, conseguiu) aparelhar as diversas instituições de controle, se omite e convida ao conflito federativo quando deveria prover a coordenação nacional no enfrentamento à pandemia. Temos um presidente como um gerador ambulante de crises, um político forjado na tarefa de alimentar o conflito e não de pactuar consensos, que é a habilidade indispensável para qualquer ator investido na função de governar.

Ao apostar na desordem, na quebra do protocolo, na irresponsabilidade de acusar e desagregar, quando deveria pacificar e construir, Bolsonaro força Legislativo e Judiciário a adentrar no terreno delicadíssimo dos freios e contrapesos previstos na Constituição. Embora tais mecanismos sejam legítimos e necessários, a sua invocação deve ser sempre uma medida muito excepcional. Ela nunca se dá sem traumas ou fissuras.

Nossa grande crise reside justamente no recurso cada vez mais frequente às medidas de controle, que leva ao estresse profundo das instituições e à perda inevitável de sua credibilidade, sobretudo quando analisamos o seu passado pré-Bolsonaro.

É justamente o fato de que Legislativo e Judiciário tenham exorbitado suas funções nas últimas décadas e manifestado apoio a iniciativas pra lá de questionáveis – como a destituição de Dilma Rousseff em 2006 ou o ímpeto punitivo da Lava Jato – que investe Jair Bolsonaro de força retórica para questionar as intenções dos poderes agora. Se foram capazes de um golpe no passado, por que não seriam capazes de um golpe agora? 

A saída desse impasse passa pela apuração das responsabilidades passadas e as do presente. É preciso que Legislativo e Judiciário reconheçam que perderam o prumo nas últimas décadas para que possam realizar o que se espera deles agora – a capacidade de conter um Poder Executivo absolutamente disfuncional e perigoso. Do contrário, continuaremos nesse moto-contínuo de hostilidades recíprocas e tentativas de apaziguamento, enquanto assistimos cansados, com a vida em suspenso.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.