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Para que serve um orçamento?

Mais do que uma peça técnica, o orçamento é um meio importante para a realização de direitos humanos
POR Thiago Álvares Feital
Foto: Agência Brasil

Mais do que uma peça técnica, o orçamento é um meio importante para a realização de direitos humanos

Thiago Álvares Feital
thiago.feitalv@gmail.com

Segundo Joseph Schumpeter, se quisermos investigar o “espírito de um povo, seu nível cultural, sua estrutura social, os feitos que sua política pode preparar (…)”, devemos olhar para o seu orçamento. Não é difícil compreender o porquê. Basta olhar o noticiário recente para ver que o orçamento público é objeto de disputas políticas acirradas. E não poderia ser diferente, pois ele é um dos instrumentos que formalizam o modo como o país atenderá às necessidades de sua população. Estas necessidades estão estabelecidas na Constituição e a maneira escolhida pelo Estado para atendê-las é a chamada política fiscal.

Em sua essência, a política fiscal é a resposta a três questões: como o Estado arrecadará recursos; como estes serão administrados; e como serão empregados. Porém, ao contrário do que poderíamos imaginar, a resposta a estas questões não é inteiramente política. Isto quer dizer que a política fiscal, apesar do nome, não está totalmente sujeita à política, isto é, à orientação do governo eleito. Há limites para o seu desenho que devem ser obedecidos por qualquer governo, qualquer que seja a sua ideologia. Uma rápida leitura das controvérsias em torno do orçamento federal recentemente aprovado demonstram que, na prática, as coisas estão longe de ser assim.

Os debates sobre o orçamento e sobre as finanças públicas em geral são técnicos e herméticos. Sua compreensão pelo cidadão é difícil. Mas as questões de fundo nestas discussões dizem respeito a todos. É por meio do orçamento que uma sociedade determina as suas prioridades e o modo como pretende executá-las. Por esta razão o orçamento elaborado pelo Executivo é discutido, reformado e aprovado pelo Legislativo, por representantes eleitos pelo povo. Neste contexto, a sua principal função é concretizar os direitos previstos na Constituição.

Ao romper com o sistema político autoritário da ditadura civil-militar de 1964, a Constituição de 1988 preocupou-se especialmente com a cidadania. É por esta razão que ela prevê uma série de direitos e garantias fundamentais, acolhe direitos humanos previstos em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, estabelece direitos sociais, reconhece direitos políticos e regula a ordem econômica e a ordem social, tendo como eixo a justiça social. Ao mesmo tempo, a Constituição determina que é objetivo do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “garantir o desenvolvimento nacional”; “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”; e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Sem um orçamento à altura, não é possível concretizar nenhum destes objetivos.

É por esta razão que uma literatura cada vez maior afirma que a política fiscal é política de direitos humanos. Em um nível muito genérico, isto significa que os Estados devem “garantir que suas políticas econômicas sejam compatíveis com os direitos humanos”, como declaram os Princípios e Diretrizes de Direitos Humanos na Política Fiscal. Nesta perspectiva, os direitos humanos são diretrizes para orientar o desenho do orçamento, são instrumentos para avaliar se o orçamento projetado está de acordo com as obrigações internacionais do país e se permitirá concretizar os direitos previstos em tratados e na Constituição.

Normalmente, associamos as normas de direitos humanos à perspectiva da judicialização dos direitos. Neste caso, os tratados são instrumentos para reclamar no Judiciário um direito que foi violado. Mas a utilidade destas normas não se exaure nessa importante função. Os tratados de direitos humanos também podem servir como instrumentos para orientar a atuação do Estado. Nesta perspectiva de prevenção e planejamento, os direitos humanos funcionam como dispositivos para desenhar políticas públicas, inclusive a política fiscal. A pergunta que pode ser formulada então é: como os direitos humanos podem contribuir no processo de elaboração e aprovação do orçamento?

Infelizmente, a discussão institucional está longe de passar por esta reflexão. Não apenas porque a lógica da austeridade parece ter colonizado o campo jurídico — com o apoio da mídia e de especialistas — mas porque a concepção de direitos humanos que é difundida entre nós é uma concepção neoliberal. Nela, os direitos são apresentados como luxos dispensáveis nos momentos de crise. Esta perspectiva contraria a própria razão de ser dos direitos: é justamente nas crises, quando os recursos disputados são escassos, que os direitos humanos se mostram mais relevantes para estabelecer critérios que orientem as escolhas políticas.

Aqui também está a vantagem de se adotar uma análise da política fiscal baseada em direitos. Com ela, agrega-se ao debate uma dimensão ético-jurídica que falta à perspectiva puramente econômica. Como em qualquer disciplina, na economia, as divergências teóricas são continuamente renovadas e as teorias mais discrepantes podem ser sustentadas para fundamentar diferentes posições políticas, o que dificulta a formação de consensos. Os direitos humanos agregam ao debate uma dimensão normativa. Nesta dimensão, a economia é um instrumento para realizar direitos. E a realização dos direitos é a expressão concreta da justiça social prevista e na Constituição de 1988 e em tratados ratificados pelo Brasil. Na medida em que esta abordagem estabelece critérios com os quais algumas teorias econômicas são incompatíveis, ela pode auxiliar na formação de consensos.

Os direitos humanos oferecem uma abundância de instrumentos para superar a crise atual respeitando a dignidade humana. Esta é o núcleo dos sistemas internacionais e da própria Constituição de 1988. Não é possível superar a crise fora destes marcos e a despeito dos direitos, como se estes fossem um excesso que deve ser reduzido. Ou sairemos da crise por meio do direito ou estaremos condenando a nós mesmos e as próximas gerações ao retrocesso.

Thiago Álvares Feital é advogado e professor. Está no Twitter

Thiago Álvares Feital

É advogado, professor, doutorando e mestre em direito pela UFMG. Pesquisa tributação, desigualdade, gênero e direitos humanos.