Bemdito

Qual é a utilidade das Ciências Humanas?

As Humanidades nos fazem lembrar dos erros históricos e nos projetam o futuro
POR Ricardo Evandro

As Humanidades nos fazem lembrar dos erros históricos e nos projetam o futuro

Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com

Vou direto ao ponto: é preciso entender que os conhecimentos das ciências humanas não estão desconectados das ciências da saúde, natureza e tecnologia.

Ideológico é justamente achar que se pode fazer pesquisa com a natureza, com a natureza humana, com o desenvolvimento tecnológico, mas sem, por exemplo, uma ética científica de pesquisa; sem um diagnóstico sociológico sobre impactos sociais do consumo; sem o conhecimento teórico sobre o direito, acerca das normas de autorização legal das pesquisas industriais, das relações de trabalho na indústria e sem uma devida hermenêutica dos contratos comerciais de produtos; sem a reflexão ética nas pesquisas médicas e na relação médico-paciente; sem pensamento antropológico sobre as comunidades indígenas, desde a preservação de suas identidades e tradições, até mesmo preservação de seus conhecimentos tradicionais sobre remédios na Amazônia, etc.

Pronto, fiz algo que não se deveria fazer. Acabei tentando mostrar a utilidade das ciências humanas. Mas, em verdade, nem precisava fazê-lo. Pois as Humanidades podem ser “inúteis” mesmo. Elas podem ser inúteis para o mercado e para o desenvolvimento tecnocientífico. Aliás, elas até atrapalham o “desenvolvimento”: impedem pesquisas com animais e com humanos, impedem experimentos flagrantemente anti-bioéticos e impedem que as tradições dos povos originários se percam em meio ao desmatamento e à miséria que a colonização lhes impuseram.

As Humanidades podem servir para nada. E isso não é um problema. É o seu mérito: as Ciências Humanas são a memória da humanidade e sua consciência histórica. Elas nos fazem lembrar dos erros históricos, elas nos projetam o futuro, dão-nos aquilo que Hans Jonas chamava de “heurística do medo (temor)”: medo de um futuro desigual, desumano, artificial e catastrófico. Medo de um holocausto, da shoah.

As Ciências Humanas nos lembram sobre o que nos faz humanos e também o que nos desumaniza. Podem até mesmo colocar em questão a própria humanidade e seu humanismo, enquanto máquina assujeitadora, excludente e simplificadora das diversas formas de vida. Há quem tenha medo das Ciências Humanas. E uma hipótese: talvez seja porque elas justamente podem revelar que não há neutralidade, que a tecnologia não tem nada de técnico, que há sempre um ethos e um télos em toda ação humana.

O atual governo federal coleciona uma série de falas desastrosas de seus ministros e de seu chefe. Nessa semana, o atual ministro da economia falou sobre o “problema” de o brasileiro querer viver demais – se não bastasse, junto a isto, o seu plano genial de recuperação econômica, que é o de taxar livros. Mas inesquecível mesmo foi a atuação do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub e seus pronunciamentos.

Entre centenas de falas toscas, Weintraub atacou as universidades públicas e especialmente às ciências humanas, chegando até mesmo a dizer, antes de ser ministro, em 2018, numa transmissão ao vivo com um dos herdeiros da ex-família real do Brasil, Luis Philippe Bragança, que “em vez de as universidades do Nordeste ficarem aí fazendo sociologia, fazendo filosofia no agreste, [devem] fazer agronomia em parceria com Israel”.

Talvez o que se pode querer com o sufocamento das Ciências Humanas seja invisibilizar as próprias pretensões políticas, fundadas em interesses econômicos, que veem limites éticos e jurídicos como meros obstáculos para o lucro de atividades industriais, do agronegócio. Com isso, o que se quer é talvez deixar somente para uma elite residente no sudeste e no sul do Brasil pensar filosoficamente ou dominar técnicas legislativas e estudos sociais, fazendo, assim, com que a juventude nordestina, por exemplo, – que votou de modo dissonante ao restante do país, na última eleição presidencial, em 2018, vale lembrar – fique impedida de acessar a tradição do pensamento mais complexo.

Isso seria algo perigoso demais para o atual governo, pois é com essa habilidade que se é capaz de por em xeque ideologias, de transformar em argumentos a consciência política e, com isto, racionalizar sua possível oposição ao atual governo.

Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.