Bemdito

Qual o valor de uma análise?

As clínicas públicas de Freud e o movimento psicanalítico contemporâneo
POR Leonardo Araújo

No famoso discurso de Budapeste (1918), Freud afirmou que o pobre deveria possuir o mesmo direito à saúde mental que tinha à cirurgia, e que a neurose, tanto quanto a tuberculose, precisaria ser tratada pelo Estado, em razão das profundas consequências trazidas por ela à saúde pública. Com esse gesto, o psicanalista austríaco tornou possível a criação de uma diversidade de experiências de clínicas públicas por toda a Europa. Tendo começado em Berlim, elas rapidamente se espalharam por Londres e Viena, permitindo o atendimento gratuito a centenas de pessoas, de todas as classes, idades e profissões.

Isso representou um marco para o movimento psicanalítico à época, juntamente à redefinição da neurose, considerada não um problema individual, mas parte integrante das modalidades de sofrimento sociais, deslocando a problemática psíquica do campo da saúde para inseri-la também no da política. Ao contrário de um instrumento de adequação do sujeito às demandas da sociedade, portanto, o que a psicanálise propunha era a possibilidade de emancipação política do sujeito.

Embora a historiadora Elizabeth Danto tenha contado essa história no livro “As Clínicas Públicas de Freud” (2005), impressiona que, antes disso, pouco se falasse sobre um dos eventos fundantes da teoria e da clínica freudianas. Afinal de contas, onde foram parar a experiência das clínicas públicas de psicanálise?

As vivências produzidas por alguns grupos de psicanalistas que realizam, no Brasil, trabalho de escuta não mediada por dinheiro apontam uma retomada do germe inicial do pensamento de Freud, para quem o inconsciente era não só político como também histórico. Pois como defender uma ética do desejo sem levar em conta o fato de que as pessoas pobres não conseguem, em geral, encontrar lugar para falar de seus sofrimentos, angústias e fantasias?

Nesse sentido, somados a outros grupos/coletivos de psicanalistas (Clínica Pública de Psicanálise, Perifanálise de São Mateus, Psicanalistas da Praça Roosevelt, Margens Clínicas, só para citar alguns) dois deles vem atuando, em Fortaleza, para ampliar o acesso aos espaços de escuta na cidade, a despeito de não receber qualquer apoio do poder público.

Surgida em 2019, a Margem Psicanálise divide-se em dois núcleos – Clínica Livre Núcleo Bonja e Clínica Livre Núcleo Dandara (voltado à população LGBTQIA+), – atuando no território do Grande Bom Jardim, em parceria com a ONG Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS). Já o coletivo Ser Ponte deu início às atividades no começo da pandemia, proporcionando, além de outras atividades, escuta gratuita a líderes comunitários de territórios periféricos, particularmente atingidos pelos efeitos devastadores do Covid-19.

Se o dinheiro é um símbolo, não haveria de ser possível outras “moedas” como preço que se paga para a entrada no simbólico? Tal questão é espinhosa porque, muitas vezes, se mistura ao próprio desejo de o/a psicanalista ser “bem” pago por seu trabalho – algo completamente legítimo. Mas o que não se pode é universalizar uma certa noção de pagamento que acaba por engendrar recortes sociais excludentes e reforçar privilégios.

Refletir sobre essa questão para além dos marcos do pensamento liberal e de uma noção autárquica de indivíduo cria a necessidade de pensar a psicanálise a partir de outros referentes – decoloniais, antirracistas, anti-lgbtfóbico –, uma vez que as clínicas públicas abrem a possibilidade de que uma diversidade de corpos circule pelos espaços de escuta, trazendo consigo um conjunto de questões específicas, sem as quais a psicanálise está fadada à irrelevância.

É como afirmam Marco Fernandes e Rafael Alves Lima no posfácio do livro de Danto; “Afinal, as clínicas públicas de Freud são a prova de que a história da psicanálise não é uma competição estática na qual ‘vence quem fala mais alto’ (ou mais moderadamente). Justamente, é por ser móvel que ela se constrói e se reconstrói a cada urgência do contemporâneo, que lhe exige explicações por meio do resgate de vozes ditas vencidas. Que se suspendam as críticas ardilosas que dizem que olhar para trás quando a barbárie se apresenta ao lado seria uma forma de negar o que vem pela frente. Dos discursos dos vencedores estamos fartos: movemo-nos” (2005, p. 390).

Se a mudança de posição subjetiva diante do próprio sofrimento implica a formulação de uma nova relação com a linguagem, sendo esse um dos efeitos mais radicais e potentes do tratamento psicanalítico, que outro mundo poderia ser inventado caso mais pessoas tivessem acesso à tal experiência? É movido pelas reverberações éticas, políticas e clínicas mobilizadas por essa questão que o movimento psicanalítico se refunda e continua produzindo consequências poderosas.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.