Quatro impossíveis
Senhor Juiz,
Quem lhe escreve é uma jurisdicionada. Não nos conhecemos, mas nossas vidas se cruzam no ponto exato em que suportarei os efeitos da sua sentença.
Às vezes eu sonho com um mundo totalmente diferente. Por exemplo, um mundo em que a sua profissão tivesse deixado de existir por haver se tornado desnecessária. O Estado estaria tão evoluído que todos os cidadãos teriam seus direitos atendidos. E as pessoas seriam civilizadas e, conversando, chegariam a um consenso sobre seus conflitos. Os instintos mais primitivos e violentos seriam sublimados. Esse mundo jamais existirá. Mas acredito que seja um exercício importante imaginá-lo. Imaginando o impossível a gente amplia o pensamento.
Freud, no prológo do livro A Juventude Abandonada, de August Aichhorn, anunciou três impossíveis: governar, educar e psicanalisar ou curar – conforme as traduções. São três trabalhos que exigem atuar na incerteza e nos quais os resultados nunca saem conforme o planejado. O fracasso é a única garantia. Pois há, no cerne dessas ações, o imponderável ser humano.
Gosto muito de uma brincadeira infantil que diz assim: “Joãozinho construiu a casa. Zezinho destruiu a casa. Quem tem razão?”. Quando o interlocutor responde Joãozinho, a resposta certa é Zézinho. Quando o interlocutor responde Zezinho, a resposta certa é Joãozinho. A risada se produz justamente pela possibilidade de brincar com o impossível de, falando de pessoas, haver uma única resposta certa. Uma brincadeira que nos fala seriamente sobre a complexidade do ser humano. Não existe resposta correta. Cada um tem as suas razões.
Por isso eu incluiria a sua profissão em um dos impossíveis. Partindo do princípio de que foi uma escolha sintomática e não uma escolha cínica, reconheço que deve ser difícil. Ouvir duas histórias e ser a pessoa que decide quem tem razão. Mandar prender, retirar a guarda dos pais, dar ou retirar a possibilidade de um tratamento médico que pode salvar a vida de alguém. Em muitos processos o senhor julga o valor da vida de uma determinada pessoa. E a sua decisão dá, no mínimo, um grande empurrão no acaso.
O problema se aprofunda quando, para livrar-se dessa angústia, o juiz acredita que sua profissão é possível. Aí começam as piores confusões, pois a sentença torna-se, na cabeça do vivente, sinônimo de verdade. Juiz que já tem a decisão pronta antes de ouvir as partes talvez devesse mudar de profissão. Não recomendaria que se tornasse ministro ou governante, pois já teria demonstrado sua incapacidade de suportar o que não sabe. Quem, no campo do impossível, se move com certeza, costuma fazer um péssimo trabalho. Atesta que perdeu uma das coisas que nos faz mais humanos, a capacidade de titubear, de colocar em dúvida.
Para as missões impossíveis seria recomendado um pouco de coragem para jogar-se na incerteza. Acolher e abraçar aquilo que não está no nosso comando. Suportar a angústia de não-saber exatamente onde iremos chegar e, apesar disso, agir. Vale ter algum farol a guiar o caminho, desde que se aceite que o oceano será sempre muito maior que o minúsculo barquinho.