Reencontrar corpos, falar com os mortos #1
Dos filmes eróticos mais surpreendentes dos últimos anos, It feels so good é uma respiração ofegante entre erotismo, tragédia e memória
Cauby Monteiro
cauby.ecm@gmail.com
No último dia 11, completou-se uma década desde o sismo e o tsunami de Tohoku, região do nordeste japonês. O rastro de destruição, gravado em imagens aterradoras na época – em que se podia literalmente ver a terra abrindo-se e engolindo seus habitantes, e as ondas gigantescas levando embora edifícios e corpos que nunca mais foram encontrados – parece hoje, levando em conta nosso contexto de pandemia, um outro mundo. Mesmo com 15.894 mortes confirmadas e 2,5 mil pessoas desaparecidas, hoje lembramos do desastre como mais um na longa história de uma ilha fadada aos humores e tremores da natureza. Na nossa marca maldita própria, temos, em número de vidas perdidas, uma tragédia de Tohoku a cada semana.
Embora com o aparente distanciamento causado pelos anos, o desastre e as suas consequências (além da destruição, causou a explosão da Central Nuclear de Fukushima I, com os efeitos da radiação a serem descobertos até hoje), não passou sem influenciar o cinema japonês desde então. Shin Godzilla (Hideaki Anno e Shinji Higuchi, 2016), por exemplo, atualiza o monstro, que, de filho de Hiroshima, passa a ser visto como uma força da natureza: a narrativa se desenvolvendo como num procedural de crise política e administrativa, construindo o filme através de inúmeras reuniões de Estado com o intuito de conter os danos causados às pessoas e às cidades. Sobre o desaparecimento de entes queridos e a tentativa de recuperar a memória deles, temos os dois filmes de Kiyoshi Kurosawa, Para o outro lado (2015) e Antes que tudo desapareça (2017). Ainda assim, são poucos aqueles que citam ou lidam mais diretamente com o acidente, como afirma o crítico do Japan Times James Hadfield: “Muitos cineastas falam do quão profundamente o desastre os influenciou, mas poucos tentaram confrontá-lo de frente. Alguns dos mais bem-sucedidos esforços até agora foram documentários”. Entre os filmes de ficção, temos dois muito recentes, de 2019 e 2020, ambos dirigidos por cineastas importantes, mas que fogem à regra geral de produção constante do cinema japonês. São filmes bem diferentes entre si, e que lidam com a tragédia por ângulos quase opostos, mas é nessa oposição e num possível ponto de contato que nos interessa falar deles.
It feels so good é apenas o quarto longa-metragem de Haruhiko Arai. Mas o cineasta, roteirista, professor e crítico de cinema é uma figura de proa do cinema japonês dos últimos 50 anos. Roteirizou em torno de 50 filmes e é considerado um dos criadores essenciais do pinku, o cinema erótico feito no Japão, gênero em que colaborou com os mais destacados realizadores como Masao Adachi, Koji Wakamatsu e Tatsumi Kumashiro. Mesmo com essa distinção, seu trabalho como cineasta é quase impossível de ser conhecido por ocidentais, já que, ainda que disponíveis, seus filmes anteriores não têm legendas em qualquer língua ocidental. Por sorte, o sucesso de It feels so good entre os críticos orientais nos permitiu o acesso, até agora negado, às outras obras de Arai. Sem parecer fugir de seu passado como roteirista de pinku, ele constrói um dos filmes eróticos mais surpreendentes dos últimos anos.
A história não poderia ser mais simples. Kenji, um perdedor inveterado – divorciado, desempregado, quase morto – reencontra sua prima Naoko poucos dias antes do casamento dela. Aparentemente utilizando seu primo apenas para realizar algumas tarefas domésticas, a natureza do relacionamento deles é logo revelada quando ela mostra um álbum de fotos como se fosse um de família, desses que dois primos podem usar para relembrar a infância ou a adolescência em comum. Só que, ao invés de inocentes lembranças familiares, o álbum contém a memória do tórrido romance vivido pelos dois, com fotografias que, apesar de esteticamente belas, beiram à pornografia e mostram dois amantes em uma ebulição constante. Kenji se assusta com essas imagens, que parecem pertencer à outra vida, outro corpo. Naoko utiliza esse puxão mnemónico para seduzi-lo novamente, uma última vez, antes de se entregar a outro homem para sempre. Seu primo vacila de início, mas logo parece ser tomado por uma força incontrolável e se rende ao chamado da carne. Esse novo encontro, esse reconhecimento de um outro corpo que ele tanto conheceu, reacende algo que havia se perdido. Kenji, que, como Naoko mesmo fala, cheirava a incenso quando ela o encontrou – o cheiro de quem não transa há muito tempo, o cheiro da morte -, revive através do sexo, demonstrando que a “pequena morte” pode também ser uma espécie de ressureição.
O que era para ser a última vez torna-se a última semana. E os amantes experimentam-se o quanto podem. Usam seus corpos sem descanso, onde convém: na cama do quarto, na mesa de jantar, numa viagem de ônibus. Só param um momento, quando ficam com os sexos inchados pelo atrito, mas, assim que recuperados, logo retomam. É escatológico ao pé da letra, como se o fim se aproximasse e eles não pudessem fazer nada a não ser colocar os corpos pra conversar. Diferente de muitos cineastas que utilizam o sexo como choque e metáfora para relações de poder, traduzindo-se em uma maneira de filmá-lo com força e grandiloquência, ou no mínimo com uma teatralidade bem composta, Arai filma o ato com naturalidade, colocando a câmera de maneira distanciada, permitindo que os corpos dos dois ocupem o centro da imagem e tenham cada movimento, por mais desajeitado que seja, protagonizando a tela. Apesar disso, não nos tornamos voyeurs, vendo de longe a paixão sem nos sujarmos. Do jeito que Arai filma, somos quase cúmplices, não de um crime, mas de um milagre. O tom apocalíptico presente desde o início do filme só vai crescendo, os diálogos que tentam entender o porquê daquele amor não ter dado certo (mesmo que isso seja óbvio) só reforçam a ideia de fim, de que vemos algo queimar de vez antes de se extinguir. Na cena mais bonita do filme, os dois estão sentados, nus, na beira da cama, com um feixe de sol a iluminar e esquentar a cena. Naoko fala de que maneira o corpo de Kenji é irresistível, como uma cobra que se transforma em um laço. Kenji arroga-se e afirma que é porque o corpo é dele e ele conhece-o bem. Mas Naoko o corrige, pegando no seu pau e dizendo que “o jeito que você conhece o seu corpo, e o jeito que eu conheço o seu corpo, não é o mesmo”. São as duas almas de Baudelaire, a sua e a do seu corpo. A partir do momento em que alguém entra em contato com o essa âme de ton corps, só pode ser um prenúncio do fim, afinal, o que há mais a se descobrir?
Tudo isso se passa na cidade de Akita, região de Tohoku que ficou praticamente ilesa ao desastre de março de 2011. Em outra cena, na banheira, logo após um pequeno terremoto, Naoko diz que ligou para seus amigos que viviam nas regiões que sofreram mais as consequências do sismo. Afirma que o que a tomou foi um sentimento de culpa pelo sofrimento deles e de gratidão por estar viva. Kenji tem um sentimento mais livre, fala como Tohoku sempre foi uma região sem sorte, como foi subjugada pelo governo na era Heian e foi considerada inimiga de estado na era Meiji e, por conta disso, não há como ele se sentir culpado por algo que não lhe diz respeito. Esse diálogo revela como culpa e liberdade os definem. São praticamente um Adão e Eva ao contrário: ao invés do primeiro casal do mundo, puro, livre de pecado, sem a nuvem negra da tragédia que os assombra, Naoko e Kenji são o último casal do mundo, renascido da morte da memória, adúlteros, incestuosos. Se um só podia levar à expulsão do paraíso, o outro é o mapa do retorno.
A tragédia que culpa uma e é indiferente ao outro retorna. O noivo de Naoko, um oficial das forças de defesa japonesas, manda uma mensagem para ela, dizendo que o Monte Fuji entrará em ebulição novamente depois de séculos. O casamento é cancelado. Naoko pode retornar aos braços de Kenji para sempre agora. Uma das fotos do álbum que abre o filme, e que é o estopim para reacender o desejo entre os dois, é a deles se jogando em um pôster gigante do zênite do Monte Fuji. Ela foi tirada depois de um pesadelo de Kenji, em que eles cometiam duplo suicídio se atirando no vulcão. A tragédia é inescapável agora. O filme termina com os dois abraçados em conchinha na cama, o som da explosão corta a cena e a tela é tomada por um desenho quase infantil do Fuji-san, abrindo-se em labaredas de fogo e formando um cogumelo de fumaça e cinzas. Com essa imagem na tela, ouvimos o último diálogo do casal, proferido através de uma respiração ofegante, causada pelo gozo. Na legenda em inglês, lemos: “Ken, does that feel good? – Yeah, what about you? – It feels so good.”
Em vista do sofrimento e da tentativa constante de recuperar a memória das tragédias, é esperançoso ver o mundo acabar numa trepada e no prazer que ela causa. É a expressão máxima de que nós, enquanto corpos, permanecemos, mesmo que a memória da história nos esqueça.
Na próxima coluna, continuamos com uma outra visão sobre essa permanência.
Cauby Monteiro é cineclubista e cineasta.