Réquiem para a Mercearia São Pedro
Pois os bares nascem, vivem, parecem eternos a um determinado momento, e morrem. Morrem numa quarta-feira, como escreveu Paulo Mendes Campos, o mais melancólico dos bebedores de uísque da crônica brasileira. E foi justamente nesta quarta, só poderia ser uma quarta de agosto (18), que ficamos sabendo do fim da Mercearia São Pedro, depois de 53 anos de fuá e fuzuê na Vila Madalena, São Paulo. Era um dos bares mais cosmopolitas da cidade. Nas suas mesas, revi conterrâneos e conterrâneas do Cariri com quem não esbarrava havia séculos, brindei com Lia de Itamaracá, encontrei o roqueiro australiano Nick Cave e bebi com o cubano Pedro Juan Gutierrez, só para começo de conversa do meu enxerimento nostálgico.
Cobiçada havia muito tempo pelos barões do mercado imobiliário, a colina da rua Rodésia, especula-se, dará lugar a um prédio de luxo. O mesmo destino de outros tantos templos sagrados nas capitais. Foi-se a época em que nossos botequins duravam mais do que nossos fígados. Agora somos forçados a mudar de estabelecimento. Há quem diga que a Merça ainda terá uma sobrevida até o bate-estaca do novo condomínio, há quem ainda sonhe — algum freguês do bar Esperança — com a manutenção da casa com as portas abertas.
Difícil encontrar no mundo um bar que tenha rendido tantos livros, HQs, discos e filmes como a taberna da família Benuthe. Não à toa, o jornalista e escritor Jotabê Medeiros, o texto mais elegante da imprensa brasileira, sapecou, no site Farofafá: “Como talvez só o Cabaret Voltaire na Zurique dos anos 1910, ou o fictício Rick’s Café de Casablanca (não o real) dos anos 1940, ou o Floridita de Habana Vieja de meados dos anos 1950, ou ainda o CBGB de NYC dos píncaros dos anos 1970, a Mercearia São Pedro da Vila Madalena tem sido, desde 1968, o lugar em São Paulo em que se materializam os anseios de quem é fugitivo das catalogações ou quem procura asilo diplomático contra a padronização cultural”.
Academia brasileira das letras bêbadas, a Merça também era o lugar predileto dos boleiros filósofos, como o doutor Sócrates, o homem da Democracia Corinthiana. Com o craque (colega de mesa redonda no programa “Cartão Verde”) e o jornalista Vladir Lemos, bebíamos às segundas, mesma noite predileta do Mário Bortolotto, sempre no balcão, sob os ares da chapa quente do mestre Antônio.
Às quintas, mantive, sem falhar uma só noite por cinco anos, um encontro com o escritor mato-grossense Joca Reiners Terron e a editora cearense Isabel Santana — havia sido cupido do amor do casal, sob este mesmo teto de zinco quente. Ronaldo Bressane, Ivana Arruda Leite, Marcelino Freire, Adrienne Myrtes, Andrea Del Fuego, entre outras e outros bravos autores, por testemunha do conto que virou romance.
Corta para o refrigerador de picolés, nas proximidades da prateleira de Diabo Verde — desentupidor de pias e ralos. Lá está o Marçal Aquino, em diálogos nada platônicos com Paulo Lins. Ele repete a sua pergunta fatal: “Que horas essa gente escreve?” Faz todo sentido a irônica indagação do homem de “Baixo Esplendor”. Aquino atribui o chiste ao Rubem Fonseca, que não entendia como esse povo que vive nos botequins consegue publicar seus livros. Os mistérios do planeta, cantariam Os Novos Baianos.
Espumas flutuantes, mares de cerveja e histórias, caríssimo garçom França. Um dos últimos lançamentos épicos, pouco antes da pandemia, foi o de “Marrom e amarelo” (Alfaguara), livro de Paulo Scott. Nesta noite, com a produtora Larissa Zylbersztajn, batizamos nossa filha Irene como novíssima frequentadora do estabelecimento. O pastel de carne seca, uma iguaria abençoada da taverna, marcou a celebração ecumênica. O poeta Marcelo Ariel disse trechos de Shakespeare, e a atriz e escritora Morgana Kretzmann benzeu o momento.
Mil e uma noitadas que ficam boiando nas memórias alcoólicas. E é o cronista Paulo Mendes Campos que nos põe mais uma pedra de gelo à guisa de réquiem: “Recordá-los, os bares mortos, é contar a história de uma cidade”.
Em 2018, no aniversário de meio século da Mercearia São Pedro, foi publicado o “Saideira”, o livro dos epitáfios dos ilustres frequentadores. Preocupados com seus próprios fígados, os autores não imaginavam que o bar poderia morrer antes deles. E repare que elenco: Ademir Assunção, André Sant´Anna, Antonio Prata, arrudA, Bruno Brum, Caco Galhardo, Cadão Volpato, Chico Mattoso, Clara Averbuck, Douglas Diegues, Daniel Galera, Fábio Trummer, Fábio Victor , Fabrício Corsaletti, Fernanda Dumbra, Gabriel Bá & Fábio Bá, Marcelo Rubens Paiva, Laerte, Jorge Filholini, Matthew Shirts, Noemi Jaffe, Otto, entre outros & outras.
Nota de última hora. Marcos Benuthe, um dos donos da Merça, cineclubista eterno e maior promotor da literatura brasileira das últimas décadas, sopra aos ouvidos boêmios dos amigos: abrirá as portas da Ria, bar e livraria, nos arredores da mesma vila Madalena. Deus tomara, Evoé, Baco!