Bemdito

Ser uma mulher e tentar fazer coisas

Sobre a habilidade feminina de persistir e resistir
POR Camille C. Branco

“Para todas as pessoas a quem foi dito que eram espertas demais para seu próprio bem”

(Michelle Dean/Afiadas)

            Há pouco mais de uma semana, fui aprovada em meu exame de qualificação de doutorado. A tese, em Antropologia Social, versa sobre as memórias e histórias de vida de mulheres feministas atuando na Universidade Federal do Pará (UFPA), onde faço o curso. A banca, formada por quatro avaliadoras imensamente qualificadas e minha orientadora, foi mais generosa com meu trabalho do que poderia agradecer neste texto. Quando a palavra foi passada para a última das professoras ela afirmou: “A verdade é que os tempos mudam, mas ainda é muito, muito difícil ser uma mulher que tenta se estabelecer como uma voz intelectual relevante neste tempo”. Outra avaliadora intervém: “Imagine isso sendo uma doutora jovem, concursada há poucos anos, tentando ser levada a sério”. A professora que começou o assunto rebate: “Imagine isso sendo uma doutora idosa, quando pensam que seu tempo de ser levada a sério já passou”. Parece um beco sem saída.

            A franqueza das minhas arguidoras me levou a confessar, quando a palavra me foi devolvida, algo que só tinha revelado a poucos amigos. Quando prestei seleção para o doutorado, na ocasião da entrevista, um de meus avaliadores questionou: “Mas você é tão novinha e tão bonitinha. Por que fazer um doutorado?”. Não foi a primeira vez que passei por algo assim e certamente não será a última. Certa vez, após uma longa apresentação sobre tutela e violência colonial, um homem na plateia, incontido, me abordou quando eu saía do auditório exclusivamente para comunicar que eu me parecia com a atriz Ana Paula Arósio. Em outra ocasião, após um seminário, almoçando distraída com outros palestrantes, um colega achou a ocasião oportuna para afirmar: “A Camille parece uma boneca, não é? Ela come e o batom não sai da boca”. 

Vejam, meu intuito não é soar desagradável: eu não me chateio que as pessoas me achem bonita, fico sinceramente agradecida e feliz pela gentileza. No entanto, estes comentários sobre minha idade, minha aparência, minha maquiagem no ambiente de trabalho, onde me proponho a discutir seriamente sobre teoria, estes comentários em tom de lisonja, escamoteiam algo um tanto perverso – o lembrete de que ali não é bem o meu lugar e que as coisas relevantes a meu respeito são de outra ordem. Que eu deveria estar fazendo outras atividades. Não saberia dizer quais. Ir ao salão de beleza? Fazer compras? Assar tortas usando anáguas e brincos de pérolas? Vá lá, até gosto de anáguas.

Este tipo de conflito é justamente o interesse exploratório do seriado The Marvelous Mrs. Maisel, criado pela imaginação de Amy Sherman-Palladino, a mente por trás de Gilmore Girls. A série, ambientada na Nova York da virada dos anos 50 para os 60, conta a história de Midge, uma dona de casa judia que vivia uma vida de comercial de margarina. Linda, mãe de dois filhos, casada com um marido bem-sucedido, a regularidade da rotina de Midge só era interrompida por breves disrupções, causadas por sua insistência na ironia, algum deboche pelos costumes, uma graduação em literatura russa, uma impostura aqui, outra acolá. Um dia, em pleno Yom Kippur, a casa de bonecas desmorona: seu marido anuncia que tem um caso com a secretária obtusa, pega uma maletinha feminina, junta as roupas e vai embora. Midge, aturdida e furiosa, toma um porre e sai de camisola até o metrô. Desemboca em um clube noturno onde apanha o microfone e profere uma verborragia hilária e obscena sobre o que lhe aconteceu, culminando com ela abaixando as alças da roupa, mostrando os seios e sendo presa. 

Estranhamente, quando joga os bons modos para o alto, Midge começa a se sentir viva como há muito tempo não acontecia. Uma artista nasceu aos supetões naquela noite desastrosa. É então que acompanhamos a conversão da dona de casa convencional em uma provocativa, inteligente e talentosa comediante de stand-up. Midge é engraçada. É afiada. Num cenário masculinizado, composto por versões enlatadas de humor, ela traz criatividade, frescor e espontaneidade, usando a própria vida como matéria para o deboche melancólico que envolve todo bom comediante. Acompanhamos também as dificuldades deste percurso. Os pais conservadores e ricos se escandalizando com os rumos da filha. O ex-marido com o orgulho ferido por ser parte do repertório dos shows. Os proprietários de casas de apresentação olhando torto, desconfiados de uma comediante mulher. 

Pensando em retrospecto, considero que tive muita sorte. Meu pai, um homem que pode ser intransigente em seu machismo, mesmo assim disse reiteradas vezes para mim e minha irmã que os melhores casamentos que poderíamos obter eram com nossos estudos e nosso trabalho. Meu avô, um leitor voraz, permitiu que eu lesse Lolita, do Nabokov, antes de completar 15 anos, bem como qualquer livro que me despertasse a curiosidade e estivesse à disposição. As figuras masculinas da minha família fizeram uma convocação: “Camille, use seus neurônios, gaste o exercício do pensamento, reflita sobre as grandes questões e as pequenas, é um jogo divertido”. É o tipo de boa vontade com a qual inúmeras mulheres não puderam contar, impedidas por amarras muito mais contundentes de renúncia feminina: maternidade, racismo, pobreza, lesbofobia, transfobia, relacionamentos violentos, imposições religiosas. 

Eu poderia, naturalmente, dissertar de modo prolongado sobre as consequências dolorosas de ser uma mulher que deseja fazer alguma coisa – qualquer coisa – que esteja um pouco fora das expectativas de seu gênero. Você sente medo. Você avança um passo e retrocede outros tantos. Sua família pode ficar desapontada com você. Você pode envergonhar seu marido, ou sua esposa e eles podem achar sua excentricidade nem um pouco atraente. Você pode sofrer repressões em graus variados de violência e boçalidade. Se você fracassa, talvez não haja consolo e sim o temido “eu avisei”. Você pode por vezes se sentir isolada e fora de lugar. Mas estas constatações, no fim, levantam uma questão: Se é difícil assim, por qual motivo vocês mulheres continuam fazendo? Por que insistem em fazer coisas, se a reprimenda pode ser tão virulenta?

Seria presunção de minha parte acreditar que minha resposta a essa questão se estende a todas as mulheres, mas creio que pode contemplar algumas de nós: continuamos fazendo porque, apesar de difícil, também é incrível. É incrível quando, depois de um longo tempo diante da folha em branco, conseguimos finalmente arrancar do peito exatamente aquilo que pretendíamos, com as palavras certas. É incrível quando a primeira pessoa diz que se emocionou com um texto, que deixou de fazer um corte na própria pele, ou se autodestruir de alguma maneira, após ler algo seu. Não deixa de ser comovente depois da segunda, terceira, ou quarta vez. É incrível quando, depois de meses escrevendo uma tese, a banca diz que chorou lendo seu texto e que você tem um dom para escrever. É incrível quando, após muito esforço preparando aulas, os seus alunos crescem e crescem e brilham, trilhando os próprios caminhos e você pode testemunhar. É por paixão, uma paixão profunda, entregue e inequívoca que continuamos. E pela certeza de que, quando a morte vier, teremos vivido uma vida minimamente interessante, recusando a previsibilidade morta de um conformismo terminal. 

Penso em Anne Sexton, a poeta americana que, após 29 anos de obediência diligente, tem um colapso nervoso, tenta suicídio, começa uma terapia e, a partir daí, passa a escrever os versos que a fariam entrar para a história da literatura dos Estados Unidos. Penso em Emily Dickinson, também poeta, uma mulher que nunca saiu dos restritos cercados de sua casa, nunca se casou e, ainda assim, depois de morta, deixou para trás um baú contendo milhares de poemas sobre êxtase, deslumbramento, vulcões que ela nunca viu, poemas que mudariam os paradigmas da língua inglesa. Penso em mim mesma, muito menor que elas, escrevendo versos, contos, romances inacabados que ainda escondo, por medo da violência que podem conter. Textos cujo impacto e consequências ainda desconheço, mas espero eventualmente descobrir. E penso também na alegria secreta de ver minhas palavras amadurecendo, conforme as exercito. 

Por este motivo, apenas por hoje, não gostaria de lamentar histórias de guerra. Hoje gostaria apenas de desejar coragem para meninas e mulheres que estão tentando, aos tropeços, fazer as coisas que desejam. Paciência e calma com as derrotas e recusas. Resiliência com os dias mais cansativos. Amigos que as incentivem, quando vocês ficarem descrentes. Senso de humor para quando vocês passarem vergonha, ou derem vexames. Amantes compreensivos com as obsessões de cada uma. E que vocês não se percam pelo caminho. Que mantenham o brilho nos olhos, maravilhando-se com o mundo sempre que puderem. Ele pode ser muito feio, mas às vezes nos surpreende. E, o que pode ser ainda mais belo e inesperado, às vezes somos nós que o surpreendemos.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.