Sonhar à contramão
No cartaz do filme, três rostos de gente comum, feições mundanas demais, peles castigadas pelas intempéries da vida nos confins da América Latina. Não há nada menos cinematográfico – no sentido espetaculoso do universo blockbuster – do que uma orelha deformada ou os fundos de um armazém cheio de tralhas deixadas por ambulantes.
Marimbas del infierno, de Julio Hernández Cordón, é um longa-metragem guatemalteco, realizado em 2010. A obra acontece ao friccionar o real na pele do cinema, ao torcê-lo, tingí-lo, desfiá-lo, para depois tramar narrativas destoantes, cujos protagonistas são aqueles em quem dificilmente se pousa os olhos com a devida atenção.
Numa quina entre paredes amareladas, vê-se uma poltrona, Don Alfonso e sua marimba, grande instrumento musical de madeira, semelhante ao xilofone. Trata-se do primeiro plano do filme, no qual o homem se reporta a um entrevistador por trás da câmera. Don Alfonso evidencia traços da sua gente indígena e explica por que a marimba é tudo o que lhe restou, após sucessivas ameaças de extorsão por parte de um grupo criminoso.
Seu drama é perceber que até mesmo a marimba, sua única riqueza, único patrimônio material e simbólico – uma referência à própria história de resistência cultural do país -, tem sido recusada nos restaurantes tradicionais que costumavam acolhê-la para concertos aos turistas. O instrumento em si reúne uma complexa diversidade. Suas origens remontam à colonização da América Central, entre o final do século XV e o século XVII, tendo vindo da África e ganhado corpo junto às madeiras da região mesoamericana, adotando a escala ocidental de doze tons.
Don Alfonso segue desempregado, agarrado à sua marimba e empurrando-a ao longo das ruas de chão batido como se realizasse tal travessia há mais de quinhentos anos, burlando as tentativas de extermínio praticadas pelo colonizador. A imagem do objeto, que remete ao piano de cauda pelas dimensões e as teclas, sendo deslocado com esforço por Don Alfonso, em meio ao espaço conturbado da cidade, gera um certo mal estar. A imagem também catalisa a força tremenda do músico, na tentativa de sobreviver e salvaguardar a cultura de seu povo, constantemente aniquilada pelos processos avassaladores em nome do “progresso”.
O inusitado do enredo se dá no encontro de Don Alfonso com Chiquilín – jovem sonhador, ex-presidiário, movido a entorpecentes e hip hop – e Blacko – metaleiro de coração e médico frustrado. Os três, tão distantes à primeira vista, partilham a existência às margens, os trajetos da errância. Cada um parece repelir, a seu modo, a norma social, os modelos desenhados à régua daquilo que se convenciona chamar de triunfo e bom gosto.
Na era dos coachings, eles figuram como anti-heróis que, impulsionados pelo estrondo do fracasso, inventam juntos uma música insuspeitada. O projeto de banda denominado Marimbas del infierno congrega o instrumento mais representativo da história da Guatemala às guitarras e à bateria do heavy metal, com a voz de Chiquilín experimentando versos. Os diálogos são absurdamente geniais, na mesma medida em que alguns silêncios repercutem com frustração e tristeza.
Chiquilín, o pícaro que trai o amigo e se desfaz da marimba para dar dinheiro à namorada, protagoniza uma das cenas mais desconcertantes: na cama do motel, pula e gargalha, com seu jeito meio troncho, ao lado da garota que lhe enfeitiçou. Drogados, agem como duas crianças. Essa também é a cena mais bonita.
Na contramão do sistema de produção capitalista e do cinema grandiloquente, o filme se desenrola na lida com o material das experiências dos próprios personagens (atores não profissionais) e da convergência de seus desejos. A artesania de Hernández Cordón é a de articular uma ficção que não quer deixar de ser amadora, apegada ao cotidiano, sempre aberta ao improviso, aos afetos e delírios do outro.
Marimbas from hell está em cartaz na plataforma de cinema Mubi. Sobre a história da marimba, mais informações aqui.