Bemdito

Sonho com a sogra dá cobra no bicho

Sobre a maior contravenção relativa à polícia de costumes do Brasil: o polêmico jogo do bicho
POR Alex Mourão
Reprodução/Globoplay

Sobre a maior contravenção relativa à polícia de costumes do Brasil: o polêmico jogo do bicho

Alex Mourão
alex.mourao5@gmail.com

A plataforma GloboPlay lançou em fevereiro o documentário Doutor Castor, que mostra os caminhos percorridos para a formação do famoso personagem que transitava pelo sambódromo carioca com a sua Mocidade Independente de Padre Miguel, os campos de futebol com o seu Bangu e pelas crônicas da cidade. Também frequentou algumas cadeias. Castor de Andrade ganhou fama e seu personagem ficou maior que ele.

O documentário conta a história que vai desde a dita inocência da “fezinha” no jogo do bicho, passando pelo clube Barão de Drummond, até as mortes violentas pelos pontos de caça-níqueis. Uma história cheia de reviravoltas, mas sempre apresentando a contravenção do jogo do bicho como algo folclórico e intimamente ligado à cultura brasileira – mais que tolerado, vivido.

Mas a história começa bem antes do nascimento do Doutor. Na verdade, a história do jogo do bicho está intimamente ligada à do Brasil e à de dois personagens: O Barão de Drummond e D. Pedro II.

Quando os republicanos derrubaram a monarquia e D. Pedro II partiu para seu exílio, não deixou órfãos apenas seus apaniguados, mas também o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro e todos os animais que lá viviam. Com a república, o parque perdeu a verba oficial que recebia da coroa para a sua manutenção. É nesse momento que entra em cena o nosso segundo personagem, o Barão de Drummond, que havia criado o zoológico em Vila Isabel e agora precisava conseguir dinheiro para mantê-lo.

No intuito de compensar o numerário da coroa que fora perdido, o barão teve a ideia de fazer uma rifa para incentivar a visita das pessoas aos seus bichos. Inicialmente, a ideia era sortear um nome de um dos 25 bichos e pagar ao sortudo vinte vezes o valor que ele havia desembolsado pela entrada. Era um bom dinheiro e deu certo, para o Barão e para os bichos, ao que consta. O jogo logo caiu no gosto das pessoas que acharam interessante aquela brincadeira com os animais. A partir daí, o imaginário popular se encarregou de fazer a festa e quem sonhava com sapato apostava em cavalo. Quem sonhava com um raio apostava no cachorro. Quem sonhava com a sogra, apostava na cobra.

O jogo ficou tão famoso que praticamente todos os jornais publicavam comentários e anúncios da jogatina. A ideia pegou. Fez tanto sucesso que acabou sendo perseguido pelo governo, que, em 1941, com a entrada em vigor da Lei de Contravenções Penais, ganhou um espaço todo especial em seu artigo 58 (depois passou por nova mudança em 1944, com o Decreto-Lei 6.259). E quem pratica a conduta ganhou também um nome interessante: contraventor. Note que é bem diferente de criminoso. Quem viu o documentário sabe que o Doutor Castor nem se incomodava tanto em ser associado à contravenção. Contravenção. Não tinha grande problema em ser chamado de contraventor. Fazia parte, de certa forma. Mas criminoso não.

Atualmente, o art. 58 continua ali, vigilante, olhando tudo e todos. Mais que isso, o jogo do bicho está no capítulo Das contravenções relativas à polícia de costumes. Costumes, só para deixar claro. Não importa falar que a conduta é socialmente aceita. Não importa falar que a sua avó faz uma fezinha e, sempre que tem um sonho mais rebuscado, joga num bicho. Por sorte, sua vozinha não é criminosa. Só é contraventora mesmo. Como o Castor. E para que fique bem claro, o banqueiro também é contraventor. Igual à sua avó.

Essa mesma lei, até 2009, também punia a mendicância, com prisão simples de quinze dias a três meses. E ainda pune a vadiagem.

Este pequeno texto foi só mesmo para chamar a atenção para aquilo que é ilegal ou não – e, principalmente, por que é ilegal ou não. Já pensou sobre isso?

Quanto às avós de todos e todas, peço perdão pelo inadequado uso nos exemplos, até porque nenhuma vozinha comete qualquer tipo de infração penal.

Alex Mourão é professor universitário. Está no Instagram.

Alex Mourão

Professor universitário, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutorando em políticas públicas.