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Supremo é o povo?

O que ansiedade com o julgamento do STF diz sobre ativismo e partidarização do Poder Judiciário
POR Juliana Diniz
Marcello Casal/Agência Brasil

O que ansiedade com o julgamento do STF diz sobre ativismo e partidarização do Poder Judiciário

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Parece espantoso que o destino de um país dependa da decisão de cinco juízes, por mais importantes que eles sejam na hierarquia do Judiciário. Ontem o Brasil atingiu o maior número de mortes diárias por covid-19 desde o início da pandemia. 1954 pessoas, uma multidão. Seria um fato digno de tomar todas as manchetes, mobilizar pressões políticas e engrossar o coro pelo impedimento de um presidente visivelmente inepto. Deveria ser nossa preocupação imediata, mas a atenção foi outra: o julgamento na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal do habeas corpus em que é debatida a suspeição de Sergio Moro nas ações movida contra Lula.

A importância política do caso é indiscutível: caso Moro seja reconhecido suspeito, todos os processos em que o ex-presidente foi réu serão invalidados do início ao fim e cairá por terra o argumento de que a retirada de cena do ex-presidente foi legitimada por decisão da justiça. É a oportunidade da reabilitação moral de uma das figuras políticas mais importantes da história do Brasil – goste-se ou não, a liderança carismática que, mesmo após tantos revezes, continua eleitoralmente competitiva. “Eu já tô separando meu título. Meu voto é dele”, eu ouvi na fila do pão. A suspeição do juiz que levou Lula à prisão é mais do que a recuperação formal de sua elegibilidade, é um trunfo de marketing político – nas mãos de um bom estrategista de comunicação, é a prova perfeita de que Lula foi mártir, que resistiu à injustiça e está pronto para recomeçar. Pronto para receber os votos daqueles que, em quarentena, na fila do pão, com os boletos acumulados, só querem voltar à normalidade, pagar a gasolina e comer carne de novo.

Por isso o julgamento era tão importante. Exaustos de Bolsonaro, com medo real de que ele nos leve à morte, o país se angustia pela falta de lideranças tangíveis que sejam capazes de bater o atual presidente. Por mais absurda que seja sua gestão, Bolsonaro resiste, se safa, escorrega nos gráficos de aprovação, numa onda que desce e volta a subir, uma onda difícil de entender – em qualquer lugar são e funcional do mundo, ele já teria caído há tempos, a lista de crimes de responsabilidade é extensa e odiosa. 

Dá pra entender a nossa ansiedade em ouvir atentamente as dezenas de páginas do voto do ministro Gilmar Mendes. O protagonismo de um juiz, no entanto, sempre acende um alerta em qualquer democrata digno do nome. Tem algo que não parece certo na atitude de assistir à TV Justiça como assiste à final da Copa do Mundo.

Assim como em 2018, é a decisão de meia dúzia de autoridades que pode definir o destino de um país. Uma decisão que está longe, muito longe de ser técnica, que envolve muitas variáveis políticas manipuláveis pelo tribunal – como o poder de agenda, por exemplo. Até segunda à noite, não sabíamos se o voluntarismo de Gilmar Mendes determinaria ou não o julgamento da suspeição no dia seguinte. É um campo de incerteza imenso, onde nos sentimos reféns de movimentos de bastidores que definem a História com h maiúsculo, mas que não são controláveis pelas urnas, pela função que desempenha um juiz.

A politização, partidarização e a captura da jurisdição constitucional brasileira por interesses de grupos têm nos causado mal há bastante tempo. Por mais que a função de juiz da Suprema Corte sempre seja política – porque dizer o que é a constituição é um ato de poder -, não se pode tolerar que se instrumentalize um tribunal para julgamento de projetos políticos, neutralização de forças eleitorais e endeusamento de falsos ídolos. O povo brasileiro merece mais que isso.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.