Bemdito

Todos os brancos são racistas?

Uma generalização que permite refletir sobre a nossa estrutura social, calcada em uma hierarquia racial histórica
POR Izabel Accioly

Uma generalização que permite refletir sobre a nossa estrutura social, calcada em uma hierarquia racial histórica

Izabel Accioly
mariaizabelaccioly@gmail.com

O racismo é estrutural. Quando afirmo isso, quero dizer que, em nosso país, há um conjunto de práticas racistas que se apresenta na nossa história, manifestando-se nas instituições, na cultura brasileira e nas relações interpessoais. Mais do que isso, o racismo atualiza e perpetua a marginalização e a aniquilação de certos grupos étnico-raciais em detrimento de outro, a branquitude. O racismo também se infiltra nos nossos relacionamentos e nos nossos afetos. As nossas concepções sobre o que é bonito ou feio, superior ou inferior, digno ou indigno de amor estão intimamente ligados à ideia racista da dicotomia entre branco bom x negro mau. Desse modo, o racismo está presente quando sentimos repulsa ou mesmo quando nos afeiçoamos por alguém.

No Brasil, o preconceito racial não impede que pessoas brancas se relacionem ou convivam com pessoas de outras raças. Entretanto, essas relações são marcadas pelo racismo, mesmo que sutil, através de um viés inconsciente. O preconceito racial está presente em todas as relações interraciais, até mesmo naquelas em que o amor deveria prevalecer. O que dizer de uma filha negra de mãe branca que tem seus cabelos alisados desde cedo? Ou do pai branco que “brinca” de apertar o nariz do filho negro para afinar? É difícil e doloroso identificar o racismo quando ele ocorre envolto numa espécie de falso cuidado.

Muitas vezes, sentimentos de afeto e de repulsa estão presentes numa mesma relação. Em Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano, Grada Kilomba nos apresenta o exemplo de um homem branco que cheira o cabelo da namorada negra e associa o odor de óleo de coco que ela usa nos cabelos com o odor de macaco. Em Minha mãe pintou meu pai de branco: afetos e negação da raça, Lia Vainer Schucman analisa o caso de uma família interracial onde a mãe branca silencia a ancestralidade negra e contesta a identificação racial do filho negro. O racismo à brasileira, marcado pela miscigenação, faz com que muitas vezes a violência racial ganhe uma máscara “amorosa”.

Dizer que todos os brancos são racistas, mesmo os que têm relações de afeto com pessoas de outras raças, é algo impactante para a maioria. A generalização assusta à primeira vista. Quando refletimos sobre a nossa estrutura social fica evidente a hierarquia racial que existe no país. Desde a invenção do Brasil, brancos ocupam o topo, desfrutando de privilégios materiais, simbólicos e sociais. Este privilégio branco está baseado na negação da humanidade de outros grupos étnicos-raciais, na falsa percepção de diferença como sinônimo para inferioridade.

Prevalece no senso comum a ideia de que racismo são apenas os atos violentos, as ofensas e os xingamentos com base em raça, ignorando os vieses inconscientes. Por exemplo, quando um aluno se surpreende com minha atuação enquanto professora, mesmo que isso pareça elogioso, sua surpresa revela uma baixa expectativa do meu desempenho profissional. Subestimar a capacidade de negros é racismo. Esse racismo aparecerá, muitas vezes, nas entrelinhas, nas sutilezas violentas da convivência.

Sim, todos os brancos são racistas. Uma pessoa branca socializada em um contexto de supremacia branca acreditará que seus privilégios são apenas direitos e naturalizará a sua posição de poder. Isso quer dizer que um branco que não percebe e analisa criticamente sua própria branquitude está fadado a criar e repetir as práticas racistas. Portanto, o combate ao racismo depende de mudanças estruturais e coletivas, mas também de reflexões e ações individuais. Não é tarefa simples, mas o primeiro passo é parar de negar as tensões raciais, perceber o lugar que ocupa na hierarquia racial e se engajar na luta antirracista.

Izabel Accioly é antropóloga, professora e pesquisadora das temáticas de relações raciais e branquitude. Está no Twitter e no Instagram.

Izabel Accioly

Mestra em Antropologia Social pela UFScar, é pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos e Socialidades da USP/UFScar.