Bemdito

Um filme triste e um filme de amor

Uma análise dos filmes "Aos nossos amores" e "As pontes de Madison"
POR Cauby Monteiro

Aos nossos amores, Maurice Pialat

São dois planos dos epicentros do filme: o primeiro (Bonnaire), que se encontra em praticamente todas as cenas, com a maior parte dos planos do filme a girar em torno dela, mas sem ultrapassar a barreira de sua pele (em outro filme: como é bom ser jovem e bela). O segundo (Pialat), em que o pai desaparece por quase dois terços da duração e volta para um arremate violento, o mais violento do filme – e se pensarmos que Bonnaire atravessa a sua adolescência entre trepadas e tabefes, isso é dizer muito -; mesmo na sua ausência, sentíamos fortemente sua presença, a lançar uma sombra ameaçadora sobre Suzanne, como ficará claro no fim.

Esse fim marca a despedida entre os dois personagens, algumas palavras francas são trocadas e chegamos aos planos finais de cada um. Ela num avião com seu novo “mec”, os dois olhando pela janela. Uma imagem que talvez representasse qualquer coisa de esperançosa, não fosse o plano seguinte do pai, no ônibus, olhando para a frente, de cenho franzido e ar desenganado. Entra-se num túnel e a figura dele sombreia-se, literalmente, tornando-se a ilustração de um mau augúrio. O corte retorna à ela, em plano solitário (a melhor tradução para o single shot), o olhar continua na mesma direção de antes, mas a expressão é de completo aturdimento. Em relação a quê? Aos nossos amores? Perdoem a brincadeira, mas é um final desgraçado. O freeze frame que retorna ao Léaud de 23 anos antes é mortal; tudo foi, mas engana-se quem pensa que tudo virá. Suzanne talvez seja uma Incompreendida, mas é, antes de tudo, entediada, triste. O corte seco e a entrada do Purcell selam seu destino, quiçá, como sugeriu o próprio Pialat através de Van Gogh, o nosso: durará para sempre, de fato.

As pontes de Madison, Clint Eastwood

O que arrebata e estranha é vermos pela primeira vez – sim, pela primeira vez- um corpo de um homem pelos olhos de uma mulher. É Francesca, que vive em uma Meryl Streep nunca tão despida de floreios, nunca tão outra e tão ela, pequena e grande; é Francesca que deseja Robert Kincaid primeiro, é ela que o atrai à sua teia, que o coloca em sua casa e o deita em sua cama.

Como um bom homem, ele deixa, ele agradece, quase pondo a perder em alguns momentos o presente do destino, que uma virada errada em uma estrada desconhecida o agraciou. São pontos de ligação ínfimos que os juntam. É um relar de braços em pernas, um leve toque no colarinho que convida duas mãos a se conhecerem, por fim é um lamber de beiços que toma a forma de um sim aos dois.

Ela viu-se antes, abriu o robe para refrescar o corpo inflamado, olhou-se no espelho como garotinha, que de fato era, ali para ele, para ele e mais ninguém. A filha surpreende-se, nenhum homem gozou-a e deu-lhe a gozar tão forte a mandá-la para a África. Então, é isso que fazem os homens e as mulheres quando se encontram. Jogam-se para outras terras, já que um tapete, uma cama, não os cabe. É tão bonito viver em liberdade, em dizer cada coisa com sinceridade. The silver apples of the moon, The golden apples of the sun. Comeram com gosto.

Encontraram-se, enfim, depois da vida, em pedaços ínfimos de corpo, que não podia nada mais ser dois. Não eram dois quando, deitados no tapete e aquecidos pela lareira, esqueciam as palavras, porque só o corpo tinha a licença da expressão. Também já não eram dois naquele plano magnífico, de duração heróica para qualquer filme feito na sua época, em que sentados à mesa viram seus projetos de vida juntos murcharem, com a primeira ida de Clint às trevas, seu lar. E mais que tudo, já não eram dois quando o tempo refletiu os nossos olhos vendo eles se verem pela derradeira vez. A chuva inunda os nossos olhos para dizermos: Amém, um já é do outro, testemunhamos o milagre último, duas almas se amaram e tornaram-se um só corpo.

Filme imenso esse, do tamanho do amor.

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.