Garantista, sim, mas não muito abolicionista
É verdade que os direitos não são coisas dadas que simplesmente brotam da terra, mas, sim, conquistas que se fazem em um longo processo histórico. Concordo e discordo. Concordo, porque entendo que o próprio conceito de direito vem sendo construído a partir de lutas históricas que perpassam os marcadores de raça, gênero e classe.
É óbvio que não dá para entender esses três elementos isoladamente, merecendo também o olhar da interseccionalidade. Porém, às vezes dá a impressão de que certos grupos já nascem com tantos direitos garantidos e outros grupos, com tantos a construir. Quase penso que existe um certo direito dado, que brota, entregue àqueles que tiveram o privilégio de nascer homem, branco, hétero, cis e em famílias com algumas coisinhas guardadas.
É, a impressão é essa mesma. E sim, aqui eu tenho lugar de fala. Lugar de fala no mundo dos que são privilegiados. Nasci exatamente nesse molde, e olha que nem são muitas posses, mesmo assim, com tantos privilégios, que, desde cedo tenho a impressão de que eu ME-RE-CI. Muito me foi dado. Pela minha família, pela escola, pela comunidade. Tanto me foi dado que nunca entendi direito o conceito de meritocracia que esse pessoal tanto fala.
E esse privilégio nos tira a visão para quem não está nesse mesmo quadrado. Somente a partir de conversas com minha companheira e com amigas, percebi como é mais difícil para elas conquistar o respeito profissional, receber remuneração digna, e às vezes até falar numa mesa de bar ou andar na rua. Sim, é muito mais difícil. Elas me falaram e me provaram.
Confesso que até hoje continuo prestando atenção, para entender melhor, tentando assim sair desse lugar onde estou, mesmo sem saber direito como fui parar lá. Mas fui. Estou. E só me resta tentar olhar para os lados, aprender, e usar esse privilégio todo como aliado daqueles que não o tem. Não, isso não é bom-mocismo, é apenas tentar entender o outro. Os outros. As diversas realidades. E compreender que há, sim, um abismo gigante entre diversos grupos de pessoas em relação às oportunidades, direitos e acessos.
É com esse olhar (mesmo que ainda esteja aprendendo), que tento compreender os movimentos políticos ligados aos meus estudos em ciências criminais. É tentando levar esse olhar, com novas perspectivas, que tento compreender que determinados grupos merecem especial proteção por parte da legislação, sabendo que a mudança na lei não muda a realidade social, como num passe de mágica. Ao mesmo tempo, a mensagem veiculada na lei tem um importante componente simbólico que pode, sim, pelo menos, colocar o tema em pauta.
Violência psicológica é sistêmica
Calma, minhas amigas, continuo sendo um fiel defensor do direito penal microscópico. Bem pequeno mesmo. Não virei um punitivista de boas intenções. Hoje enxergo determinadas normas, como a recente mudança no Código Penal, que inseriu o art. 147-B, que trata da violência psicológica contra a mulher, de uma forma mais sistêmica, dentro de um contexto social que a exige.
Não conheço qualquer pesquisa que aponte homens héteros como vítimas de violência psicológica no âmbito doméstico e familiar. Pode até acontecer, mas penso que a ausência de pesquisa sobre o tema já é um forte indicador da sua baixa incidência. Por outro lado, a violência doméstica contra as mulheres tem se mostrado epidêmica no Brasil, como demonstrado em diversas pesquisas. Infelizmente.
O novo artigo insere no Código Penal o crime de violência psicológica, que o seu conceito, aqui repetido, já estava previsto na Lei Maria da Penha (Art. 7, II) desde 2018, mas só agora foi tornado crime. Esse tipo de violência é muitas vezes revestido de disfarces, sorrateiro, duradouro, e atinge a vítima de forma cruel e covarde, restringindo a sua vida. Inclusive, muito se fala de violência física contra a mulher, aquela que deixa as marcas típicas do homicídio e das lesões corporais, mas pouco se falava da modalidade psicológica. Isso, agora, tende a mudar e o debate deve ser cada vez mais amplo.
Da mesma forma que as mulheres não deixaram de ser assassinadas com o advento da qualificadora do feminicídio, não penso que a violência psicológica irá sumir por causa do novo artigo no Código Penal. Até porque nenhuma conduta desaparece do plano social quando proibida por lei. O que a legislação penal faz é punir, ou seja, chegar depois do acontecido. Outro objetivo da lei penal seria prevenir o crime. Aqui eu não acredito muito.
Mas um objetivo que parece ser muito forte nos tipos penais que buscam proteger as mulheres é a força da mensagem. Com a nova lei, o tema é posto em debate, a sociedade se apropria e a vítima se entende como tal. Aqui, sim, entendo que esses elementos têm força para coibir práticas, expor (e punir) agressores e, de fato, combater essa violência tão covarde.