Quem tem medo de Ferris Bueller?
Acontece com todo mundo: basta só um momento, daqueles que não medimos em horas ou anos, para crescermos e deixarmos o Éden infantil para trás. Irrevogavelmente perdido. É como atravessar a soleira de uma porta invisível: quando olhamos para o mesmo cômodo, atrás de nós, não o vemos e não o veremos, nunca mais, da mesma forma. As paredes que foram altas e que traziam segurança e proteção, a partir de agora, serão descamadas e frágeis, como se pudessem ceder a qualquer momento, derrubando, sobre nossas cabeças, escombros pesados que, paradoxalmente, revelam e desnudam a completa leveza e fragilidade da nossa autoconstrução – nosso pueril e sagrado castelo de cartas esgarçadas e rotas.
Nossos olhos – as nossas janelas – não mais nos mostrarão o mundo das possibilidades infinitas e insondáveis, mas uma vez apoiados os nossos agora crescidos cotovelos sobre suas armações, conseguiremos ver, apenas e se dermos sorte, um nostálgico, melancólico e mal cuidado terreiro – a arena das nossas aventuras infantis, finalmente, encarada com os olhos da maturidade: um pequeno quintal.
Bebemos a sexta semana do nosso clube do filme nas taças que estampam a carta do seis de copas nos baralhos de tarot: a carta que nos conta sobre a vontade de buscar no passado a essência de viver, a alegria dos planos simples e sinceros da infância. Ainda em julho de 2020, nos encontramos com Ferris, Chris e Samantha, nos filmes: Curtindo a vida adoidado, Conta Comigo e Agora e Sempre. Personagens de filmes que amamos durante a infância e o início da adolescência nos emprestavam seus olhos de arrogância e ingenuidade juvenil e, durante o tempo que durava um filme, podíamos, através deles, enxergar os adultos como os incapazes e cansados que nunca seríamos e conseguíamos vislumbrar a vida como um eterno convite que nunca seria recusado.
Engolidos os anos, um por um, o gosto seco dos números abaixa nossas cabeças e, do outro lado da tela, agora, encaramos esses personagens de frente, olhando diretamente em seus olhos e não mais através deles. Com suas mesmas falas e aspirações – intocáveis em sua caixa de vidro e engrenagens -, não se alteraram, não se corromperam e não envelheceram, nem um dia, nem um segundo. Somos nós que mudamos. Somos nós que seguimos ficando entorpecidos, cada dia sendo e estando um pouco menos do que um dia fomos. Como escreveu Carlos Heitor Cony: “nem preciso de espelho e do testemunho alheio para sentir no olhar fatigado, no cansaço de tudo, que eu também estou menos – cada vez menos.”Agora, parados em outras praias, em qualquer lugar muito distante daquele a que já pertencemos, recolhemos as atitudes, as falas e as emoções desses personagens com a expressão de quem reencontra, trazida pelo mar, uma garrafa de vidro com uma mensagem dentro. Ali estão guardadas – nas cenas intactas de cada um deles – a nossa própria fotografia. Desconfortável e inquietante, eu sei.
Mas se chegarmos bem perto, se aproximarmos o rosto e olharmos fixamente através do vidro embaçado da garrafa, talvez conseguiremos alcançar um relance que seja do que ela guarda: nossas próprias impressões digitais marcadas nessa garrafa que nós mesmos atiramos ao mar, quando enxergávamos o nosso eu futuro da maneira como ele nunca foi capaz de vir a ser. Somos nós ali – do outro lado da tela – na outra ponta da vida. Inalcançáveis? Sim. E quanto a isso, não há remédio. Mas, admiráveis… quem sabe? A partir de agora, estaremos sempre do lado de fora da garrafa e teremos ainda muita vida para esculpirmos, por dentro, o olhar de ternura e de benevolência que, quando jovens, nunca imaginávamos que teríamos que aprender a destinar a nós mesmos.
Não precisamos virar o rosto – não precisamos ter medo de encarar quem fomos e o que sonhamos ser, quando jovens. Agora, podemos encarar a ingenuidade perdida nos olhos e, ao sorrir para os personagens, abraçar a nós mesmos.