Ninguém segura este bebê?
Um bebê engatinha pelas calçadas de Nova York, passeando tranquilamente sozinho entre as centenas de milhares de pernas frenéticas que sobem e descem a Quinta Avenida. Saiu de sua casa no Upper East Side com a intenção de rever o mágico que uma vez, com sua mãe, viu se apresentar na Washington Square Park. Podia ser uma cena de um filme, como o icônico “Ninguém segura este bebê”, um clássico dos anos 1990 (se você é cringe, deve se lembrar dele); mas na verdade, foi um sonho que tive há alguns meses.
Juro pra vocês, não é papo de colunista. Foi tão forte que até hoje consigo visualizar o bebê e ouvir o zunido da rua, e acredito que o motivo está no fato de que o sonho absurdo me despertou para mais uma triste realidade de nossas cidades: um bebê não pode engatinhar numa calçada na maioria de nossas cidades.
Não esperaria que um bebê pudesse passear entre o Upper East Side e a Washington Square Park, o equivalente a uma engatinhada de aproximadamente uns 12km. O que me chamou a atenção quando despertei foi o pavor que senti assistindo impotente àquela cena. O medo que um bebê na calçada causa, já que poderia ser pisoteado a qualquer momento. Seria certamente atropelado ao atravessar alguma rua, domínio quase que exclusivo da velocidade dos ubers, táxis, limusines e outros carros particulares.
Em São Paulo, não seria muito diferente caso o bebê quisesse sair de sua casa na Rua da Consolação para visitar o MASP. Veja que esse erudito bebê teria que percorrer um trecho bem movimentado da Avenida Paulista, correndo grandes riscos também. A exceção seria caso resolvesse dar sua engatinhada no domingo, quando a avenida estivesse aberta aos pedestres e fechada para carros.
O programa Ruas Abertas, estabelecido em lei, resultante de reivindicação de movimentos e organizações da sociedade civil, transformou essa e outras vias da capital paulista desde sua adoção na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad. Mesmo o risco de ser pisoteado por pedestres ou atropelado por ciclistas e skatistas é muito menor aos domingos. Pela consciência do espaço compartilhado, todos estão mais atentos uns aos outros.
Além de ruas e calçadas, nossos sistemas de transporte público também são hostis e pouco adaptados ao uso por crianças. Ainda que abstraíssemos questões de segurança pública, quantos de nós nos sentiríamos confortáveis em deixar nossos pequenos (ou até adolescentes) circularem sozinhos pela cidade de ônibus ou metrô? Os assentos prioritários a grupos em situação de vulnerabilidade (idosos, gestantes, entre outros), por exemplo, são no máximo reservados às “pessoas com criança de colo”. Esta – que deveria gozar de prioridade absoluta, como determinam a Constituição Federal (art. 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 4º) – entra apenas como objeto que qualifica o adulto que a carrega como beneficiário.
Para os parâmetros brasileiros, sou baixinho (1,65m) e já sofro em muitas situações no transporte público. Apenas imagino então o que significa para crianças lutarem para se equilibrar sem alcançar as barras, sem conseguir olhar pela janela para identificar se o seu ponto de chegada está próximo e assim por diante. Isso sem mencionar a dificuldade de crianças não alfabetizadas ou em processo de alfabetização para se localizarem nestes sistemas, algo tão natural para a maioria de nós, adultos. Percebi essa questão ao ver, na Cidade do México, uma mãe ensinar ao filho pequeno, de uns 7 anos, em que estação de metrô deveria desembarcar de acordo com o ícone correspondente à ela.
Poderíamos listar aqui diversos desafios colocados à mobilidade de crianças e adolescentes e inúmeros outros obstáculos que enfrentam na vivência em centros urbanos. Se existem atualmente várias iniciativas voltadas à melhoria dessas condições, como argumento no artigo “Cidades para e das crianças”, publicado em minha coluna no Le Monde Diplomatique Brasil, o direito à cidade apenas será uma realidade plena para elas quando puderem protagonizar, juntamente com adultos, os processos decisórios acerca das políticas urbanas.
Não é favor, não é devaneio, é uma reivindicação de muitas décadas do movimento da infância e juventude que foi reconhecida pelo ECA (art. 16, inciso VI) como obrigação do Estado brasileiro. Foi reforçada ainda pelo Estatuto da Cidade (art. 2o, inciso II), ao adotar a gestão democrática como diretriz basilar da política urbana brasileira. A radicalização da democracia exige a participação direta de crianças e adolescentes; nossas cidades precisam desse engajamento.