Talvez seja melhor descer da Torre
O dia 7 de setembro é considerado o dia do Brasil. Esta é a praxe no mundo da diplomacia e das Relações Internacionais: a data da independência ou fundação é a data da nação. Adoraria divagar sobre a ideia de formação de uma nação e até os questionamentos históricos e terminológicos: foi independência ou secessão? Também podemos indagar as questões de gênero envolvidas na subvalorização do papel de Maria Leopoldina, então esposa de Dom Pedro I, no fato histórico. Podemos e muitos já fizeram, mas é exatamente esse incensamento sofismático e o uso embolado de palavras que seguem alimentando o ódio e a confusão que precisam há muito ter fim.
O dia seguinte às manifestações foi marcado por falas oficiais dos chefes dos Poderes. O chefe do Executivo não tinha necessidade, pois já abrira sua metralhadora de palavras no dia anterior em Brasília e São Paulo. O dia seguinte, o rescaldo, coube aos outros. O chefe da Câmara dos Deputados colocou a si e à Casa como motor da pacificação. O chefe do Judiciário não condenou a existência das manifestações à fogueira, inclusive ressaltou seu caráter democrático, mas reforçou a independência da Corte e a separação dos Poderes.
De novo, palavras confusas. Para quem acompanhou pela televisão, o cenário era de apocalipse: atos antidemocráticos e violentos. Isso ou variações disso eram os títulos e as chamadas. Pelos princípios da comunicação, nem é interessante que haja palavras complicadas e pensamentos super elaborados nesse momento. Além disso, muita, mas muita gente mesmo, lançou textos nos mais diversos formatos, ressaltando o caráter golpista, a violência e o absurdo da manifestação que se repetiu em várias cidades.
Nesse mundo de coisas para ler e acompanhar, que por ofício preciso seguir, notei a equalização do discurso ainda que não condizente com as imagens que vi pela TV, espalhadas pela cidade (Brasília ficou absolutamente lotada). Nesse mar de opiniões, duas chamaram a atenção por destoarem do discurso geral e por virem de locais diametralmente opostos na maior parte do tempo: o relato de Glenn Greenwald, jornalista norte-americano que ficou bastante conhecido por seu trabalho no The Intercept e o texto publicado pelo deputado federal Marcel van Hattem (NOVO/RS).
A surpresa não é tanta se pensarmos que ambos já afirmaram, em outras situações, nortear seu trabalho por princípios e ter a verdade como um deles. Inclusive, Glenn já foi citado aqui, quando discordei do The Intercept por usar o termo “genocida” para o atual presidente, sendo que efetivamente não se aplica. O deputado também tem estado às voltas com seu partido, por afirmar apego à coerência de sua fala desde o começo, o que, em alguns momentos, implicar discurso oficializado pelo Novo.
E no que convergiram? Ambos ressaltaram a distopia orwelliana. Imagens de pessoas de idade e crianças acompanhadas de manchetes pesadas, o foco estrategicamente dado aos cartazes com dizeres antidemocráticos – viu? Ninguém disse que não existiu -, que colaboraram para reforçar uma narrativa que era parte, mas não todo, e o papel que essa forma de ver e comunicar tem no cabo de guerra que estamos assistindo.
A corda está esticada. Há dias em que nos perguntamos inclusive se ainda há corda. Mas parte do tensionamento vem das atitudes autoritárias do STF que antecedem e muito a chegada de Bolsonaro ao poder. Toda aquela gente reunida, chamada “gente ruim” em outro texto que li, muito democraticamente se revolta contra tamanha insegurança jurídica.
Insegurança jurídica não se reflete em números na Bolsa e análises pomposas, mas no dia a dia do cidadão em caos e diminuição do poder de compra – além da diminuição da confiança nas instituições, essa sim, a pior de todas. A corda é tensionada sempre que o Legislativo atropela votações com medidas para o próprio interesse, enquanto pacotes de reforma do paquidérmico Estado brasileiro seguem parados. Primeiro, o loteamento de cargos, depois as medidas com impacto social. A corda é esticada quando o presidente usa do cargo e da exposição para falar absurdos desconexos. Esperamos trabalho sério que não vem.
O que faz a fala das duas figuras públicas aqui citadas impressionantemente convergentes é a leitura do cenário de baixo, não na torre de marfim dos cheios de razão com palavras complicadas e que te dizem qual cor de camisa você pode ou não usar. Em tempo: verde e amarelo te fazem um genocida sem coração.
As falas que saem da frequência igual vêm de quem conhece a política, o mundo paralelo que é e acredito no que seus próprios olhos viram para além do trecho repetido incessantemente. Vem de quem consegue apontar erros e autoritarismo, ainda que contrários a alguém que não faz questão nenhum de defender. Isso no vídeo, e no texto publicado em sua newsletter, Glenn deixa bastante marcado. Tem total ojeriza ao atual presidente, mas daí a distorcer o que efetivamente viu para caber em algum discurso seria demais. E fazer isso não diminui suas críticas a ele.
O que difere essas duas falas públicas de todo o resto é a consciência de que apoiar uma fala distorcida e um autoritarismo para apoiar outro, por fim, acabará com todos. Quando sairmos do outro lado – pois sairemos -, perceberemos que quem melhor enxergou não estava na Torre de Marfim.