Peixes
Faz calor. Você me recebe na porta do apartamento. Pago o pedágio na entrada com um beijo, sinto o seu hálito picante em meu rosto, entro com passos firmes que seguem os seus pés.
Sim, deixe as luzes apagadas até que anoiteça, sim, deixe a luz que vem da janela transformar a poeira do chão em ouro em pó. O mundo inteiro está lá longe, minúsculo e inofensivo. Quando você está comigo, as horas de paixão se intrometem na rotina como um pássaro que pousa na água.
Você morde distraidamente uma fruta enquanto eu a observo em silêncio. Debruçada na janela, inclinada sobre a rua, as luzes da cidade dão à sua pele uma cor oliva. Você é um corpo oliva que não sucumbe à água negra e pastosa que é a noite. Você vence a noite, neste quarto, você é a noite.
A soleira pressiona sua cintura mais gentilmente do que eu faria. Não há janela no mundo com a paixão de um homem, eu digo, e você ri apontando para o céu.
Você coleciona nuvens. Prefere as nuvens que têm a forma de peixes, peixes muito vermelhos que nadam ao redor da lua. Avoada, sempre distraída, tropeça em todas as nuvens do caminho.
O cigarro em minhas mãos produz a nuvem que lhe falta e você não olha. Nesse momento, a fumaça que emerge com minha expiração, minha respiração, as nuvens de vida em meus pulmões são suas.
Olha, aquele peixinho se acomodou no lado côncavo da lua, você diz. A lua minguante parece menor e mais brilhante quando se aproxima de uma nova fase, abre um sorriso estreito numa cara preta, você diz.
Você não me olha diretamente. Nossos olhares brincam de pega-pega e é uma catástrofe quando não me olha e um furacão quando me olha.
Meu olhar é uma câmera. Sua imagem debruçada sobre o mundo, uma polaroide, a recordação preciosa destes últimos instantes no apartamento, nossa cidade fundada sobre a pedra do desejo.
Às vezes finge não saber que eu a observo. Sei que finge porque meu olhar a toca à distância, então toco sua boca. Contorno o desenho de sua boca. Uso como tinta os seus lábios untados pelo suco da fruta, e essa cor amarela é a única que me interessa, e todas as outras são menos importantes porque não estão pintadas em seus lábios. Meus dedos escapam aos dentes que abocanham o pêssego e a cada mordida sua, sou eu que me alimento porque somos um espelho. Provamos o mesmo sumo doce como gêmeos. Somos gêmeos, e eu sei, porque é isso que você me ensinou quando fizemos amor hoje cedo.
Essa é a nossa última noite juntos. Isso quem diz são as caixas da mudança. Nossos olhares se cruzam, finalmente. Estamos atentos aos sinais do destino. Não é penoso me entregar a essa melancolia, é doce, como o pêssego em sua boca. Estou satisfeito por me sentir dessa maneira, consumido pela pontualidade exasperante da realidade. Por ter regressado. Por seguir, embora não saiba para onde. Por estar em um apartamento completamente esvaziado de móveis e testemunhar, de manhã, as caixas sumirem dentro do caminhão de mudança. Por não me retirar com um aceno cínico.
Fecho mais uma caixa, a última.
Não resta nada, digo eu.
Não, você confirma, não resta nada.
Nós dois sabemos que essa é só a primeira mentira dita essa noite.
Você deixa a janela e se aproxima. Seu rosto fica a centímetros do meu.
Você quer ir comigo?
Eu estou com você agora, não estou?
Mas depois, quem vai cuidar de você quando eu for embora?
Eu mesmo, como cuidei dessa mudança, eu digo, e para zombar de mim, estalo os dedos grudentos de fita adesiva.
E de você, quem vai cuidar?, pergunto, mas me arrependo instantaneamente. Não, não me conte nada. Deixe que eu sofra depois.
Você se aproxima e crava os dentes no meu lábio. Aperta muitíssimo e o pêssego se mistura ao amargor do cigarro.
Ninguém, você diz.
Deitamos no chão do apartamento. As janelas estão abertas acima de nós. Feixes de luz flanam sobre nossos corpos como o brilho da lua sobre um rio. Pequenas ondas se movimentam ao sabor de nossos braços, que se confundem em movimentos suaves, como a coreografia de um nado.
Flutuamos, assim, na nossa cama de tacos de madeira. Um casal de peixes gêmeos na água.