A rede e a gravidade
A rede de dormir é uma membrana que se abre para acolher o corpo, moldar-se a ele, protegê-lo, acalentá-lo, balançá-lo, suspender-lhe o peso do cansaço. Essa tecnologia ancestral é uma das heranças mais valiosas dos povos ameríndios e marca presença em boa parte dos lares brasileiros, nas regiões Norte e Nordeste do país.
Nas temporadas de sertão, visito meus pais que residem na casa mais antiga da família, em Senador Pompeu, interior do Ceará. Por lá, prefiro deitar-me na rede, numa de algodão que armo entre as estantes da biblioteca que se enfileiram no corredor. É quase apertado, mas as pernas se estendem, os braços se recolhem junto do corpo e percebo que, na verdade, aquele se trata de um dos espaços mais adequados ao meu sono. Durmo bem quando estou perto dos livros, suspensa, flutuante, sem produzir pontos de atrito com o chão.
Recentemente, quando me mudei, ganhei de mamãe uma rede vermelha, de varandas de crochê. Ela integrou-se de imediato ao ambiente, com poucos móveis. Gosto do efeito que a rede vermelha causa na sala, atravessando no contra-luz da varanda, ao lado das plantas. Sem ela, a casa é mais austera, como se ainda lhe faltasse alma.
Numa das lembranças remotas de estar dentro da rede, ela me servia de casulo. Não sei que idade tinha, mas era um ser ágil e magricelo, com fome de mundo. Deitava de barriga para cima, juntava as varandas e sentia aquele tecido grosso me envolvendo inteira.
Em seguida, eu jogava todo o peso para um dos lados e conseguia, aos poucos, torcer os punhos da rede, que começava a girar devagarzinho até que – ploft! – eu me percebia de barriga para baixo. Podia olhar o chão por uma brecha, puxando as varandas para que a rede não se abrisse e desfizesse o casulo. Ao sair de lá, eu já havia me tornado outra coisa.
Lembro-me da rede de nylon que, aos nove anos, ganhei de uma vizinha querida. Só conhecia as de algodão que faziam bastante volume, mas aquela me pareceu sofisticada por caber inteira dentro de uma sacolinha do mesmo tecido. A estampa era de dinossauros miúdos em variadas cores neón, contornados por uma linha preta no estilo cartoon, e todos disputavam minha atenção. Eu dormia criando histórias para dar movimento àqueles bichos.
Quando minha filha nasceu, a rede foi a nossa salvação. Nela, eu podia amamentar e dormir ao mesmo tempo, algo fundamental para o corpo sempre exausto da mãe puérpera. Nos primeiros meses de maternidade, a rede logo tornou-se nossa fiel companheira. Nas noites em que deitava Catarina e embalava-a na rede, pensava em minhas avós, nas inúmeras vezes que realizaram a mesma ação ao final do dia, em meio a tantos filhos, tirando forças não sei de onde.
Dois corpos adultos nem sempre sabem partilhar uma rede. No entanto, a lembrança mais bonita que tenho, foi na companhia de alguém. Com quem você já soube experimentar a rede? Como se acomodaram juntos? E que pensamentos lhe ocorrem ao deitar-se sozinha nela? Você cochila, dorme, lê, consegue transformar o peso em pura gravidade?