Bemdito

Facebook prepara mais uma cilada

Desconfie da mudança de nome e da promessa de maravilhas feita pela pior das redes
POR Rogério Christofoletti

Se você não estava em Marte na semana passada, certamente, soube que o Facebook está mudando o nome da sua empresa-mãe. A notícia foi alardeada em todas as partes e, em situações normais, nem deveria ocupar tanto espaço porque isso deveria interessar só a burocratas, cobradores de impostos, etc.

A notícia reverberou bastante por dois motivos. O primeiro é que qualquer movimento do Facebook alcança uma escala impressionante, já que é a rede social mais popular do mundo e é um dos negócios mais rentáveis da história. A segunda razão do zunzunzum é que a mudança do nome vem acompanhada de uma promessa: é um passo na direção do metaverso, a aposta do Facebook para os próximos anos. Trocando em miúdos, o metaverso vai permitir que as pessoas borrem ainda mais as fronteiras entre vida real e vida online, com o uso intensivo de recursos de realidade virtual e realidade aumentada. Para o Facebook, poderemos ingressar numa nova era da vida terrestre, podendo viver experiências inéditas, criando possibilidades infinitas e revolucionando o modo de ser e estar em qualquer universo, seja o existente, sejam os que poderemos criar.

Demais, né?!

Ô!

Se todos os dias somos soterrados por notícias ruins que fazem erodir a nossa esperança, promessas de mudança soam quase sempre como tábuas de salvação. Afinal, precisamos restaurar nossa fé num futuro próximo e ter alguma perspectiva mínima de vida. Mergulhados num mundo com autocratas no poder, crises econômicas, violência, injustiça, pandemia mortal e desastres climáticos, estamos muito carentes de enxergar dias melhores. O Facebook e as demais big techs sabem disso, e chacoalham os cacos de vidro no bolso como se fossem brilhantes. Exaustos, nos deixamos seduzir porque acreditar pode ser reconfortante…

Infelizes na vida real, podemos assumir um dos muitos avatares de que dispomos no metaverso do Facebook e alcançarmos, enfim, o êxtase, o clímax e a felicidade plena.  Final feliz. Sobem os créditos com um fundo musical apoteótico.

Desculpe interromper a sua tranquilizadora fantasia, mas eu peço que pare um pouquinho pra pensar: Afinal, o metaverso é mesmo uma novidade? Por que mesclar nossas vidas online e presencial é uma boa ideia? Devemos mesmo estar todos no mesmo lugar? Por que fazer isso justo agora?

Se você quer mesmo escapar da realidade, as perguntas acima são a deixa para você abandonar a leitura deste texto. (…) Ainda está aí? Ah, sim, então, vamos adiante e me deixe tentar responder às questões que eu mesmo me fiz.

Não, a promessa de que o metaverso será uma Terra Prometida não é novidade alguma. Se você tem mais de trinta anos, pode ter se lembrado do Second Life e do The Sims, apoiados na ideia de avatares como extensões da nossa consciência em mundos inventados. Se você é mais jovem, basta pensar nos videogames que tem no console, nas corridas do Pokemon Go e em outras tantas coisas que já fazem parte da sua existência. Nem por isso, ela foi transformada num mar de rosas. Trocando em miúdos: o metaverso não é inédito nem original, e Mr. Zuckerberg sabe disso.

É claro que todos precisam de certas doses de escapismo diário porque viver requer esforços constantes de paciência, resistência, coragem, além de investimentos afetivos. Mas embaralhar as fronteiras entre vida online e vida física não é uma boa ideia. Pelo simples fato de que os riscos, as decepções, as perdas e as consequências da vida presencial são muito piores que as dos outros mundos. Levar um fora, um calote ou um tiro dói muito mais por aqui do que numa vida imaginada. E ter a plena consciência disso não é uma trivialidade. Pode ser a diferença entre morrer ou sobreviver. Manter bem separadas as vidas vividas e as projetadas é uma necessidade que ajuda a valorizar a existência como fato natural e socialmente construído, algo a que nos convencemos a fazer desde sempre.

Buscamos refúgio em mundos inventados a todo o momento: quando somos sugados pelas páginas de um romance, quando somos envolvidos pela escuridão do cinema, quando sonhamos acordados no ponto de ônibus. Isto é, transitamos por outros universos sem precisar do Facebook ou de qualquer outro gigante tecnológico. Não dependemos deles para isso e não deveríamos ficar reféns de seus serviços ou produtos, pois é delegar algo muito precioso: a autonomia de ligar e se desligar quando bem quisermos e quando mais necessitarmos. Por isso que o metaverso do Facebook não pode ser a nossa porta dos fundos, a nossa ponte para os sonhos. Não precisamos estar todos no mesmo lugar, e se espalhar é natural, saudável, esperado, rico e divertido.

Por que Facebook rebatizou a sua empresa-mãe agora? Os mais alinhados dirão que é um reposicionamento de mercado que indica quais serão as apostas estratégicas da big tech nos próximos tempos. Os mais desconfiados, como eu, dizem que isso não é uma construção de futuro, mas uma tentativa para consertar o presente. Não tem a ver só com as possibilidades sociotécnicas da próxima década. Tem a ver com a voracidade atual de reter a atenção de todos o maior tempo possível num único lugar, os jardins murados da rede. Criar um metaverso a partir do Facebook ou fazer dele a porta de entrada nessa miríade de planos existenciais é uma condição fundamental para que nos acomodemos como se estivéssemos embevecidos e narcotizados. Não é uma coincidência o anúncio da mudança da razão social. Ela vem no momento em que uma ex-funcionária denuncia uma série de práticas intoleráveis do Facebook, como as engrenagens que facilitam a disseminação do ódio e das mentiras, e os efeitos nefastos que suas redes-irmãs causam em jovens e crianças.

Mais do que a promessa de uma Terra Prometida, a jogada é uma indisfarçável e complexa operação de relações públicas com a intenção de neutralizar críticas, atenuar denúncias e gerenciar danos. O metaverso está longe de existir e de impactar nossas vidas, pois ele depende de muitos esforços criativos, investimentos maciços e aceitação popular. Do ponto de vista concreto, o metaverso do Facebook é só especulação, marketing, cosmética, blablablá. Pode ser wishfull thinking ou só bullshitmesmo, para usar uma terminologia pernóstica, própria de algumas redes.

Se você ainda tem os pés no chão, desconfie das soluções mágicas, da retórica publicitária e da oferta de universos que sequer saíram das pranchetas dos engenheiros e das planilhas do financeiro. O preço anunciado pode ser tentador, mas não há terrenos à venda na lua. Não precisamos que o Facebook nos dê um metaverso de presente. Somos capazes de imaginar, construir e habitar os mundos e as vidas que desejarmos, sem pagar o pedágio da atenção pra ninguém.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).