Bemdito

Conta comigo?

Os filmes que sempre estarão lá para nos acompanhar
POR Olivia B. de Avelar

Eu fui uma criança do final da década de 80 e início dos anos 90 e morava no bairro Coronel Borges, em Cachoeiro de Itapemirim. A cidade não era como agora – Cachoeiro cresceu muito – mas, mesmo há 30 anos, a atmosfera em que cresci já era bastante urbana. Clima de cidade pequena, mas não havia mais traços rurais. Sem avós, tios ou parentes no interior, na praia ou, mesmo, em cidades vizinhas, não tenho memórias infantis de brincar em quintais, do cheiro das árvores, de tomar banho nos córregos ou qualquer coisa parecida com isso. Eu ia à praia raramente e não gostava. Eu não viajava com frequência. Meu universo infantil eram os cômodos da minha casa e a minha rua.

Eu cresci, literalmente, na frente da televisão. Quando penso, hoje, sobre essa época, fico feliz que a programação televisiva repetia tantas e tantas vezes os mesmos filmes. Foi por causa dessa repetição, foi porque eu assisti aos mesmos filmes incontáveis vezes que muitos deles se transformaram em parte da minha história pessoal. É por isso que, agora, me lembro dos personagens como se fossem meus amigos de infância.

Eu não era uma criança tímida ou reclusa. Eu tinha muitos amigos e nós brincávamos juntos quase toda semana. Na minha história, os filmes e os personagens não funcionavam como uma substituição para o mundo real, como válvula de escape ou esconderijo seguro: muito pelo contrário! O cinema expandia minha imaginação, minha vida de cidade pequena e me falava de um mundo que eu não experimentava fora da tela – mas que eu ansiava, profundamente, por visitar e por buscar, onde quer que ele estivesse. A realidade imediata e a minha experiência imaginativa nunca competiram. Elas se somavam. Me multiplicavam e me deixavam ser muitas. E é isso que eu aprendi a sentir, na infância, e que carrego comigo, até hoje. 

 Quando eu tinha nove anos, o filme Conta comigo me encantava pela aventura: tantas vezes eu quis imitar a viagem a pé daqueles quatro amigos; tantas vezes eu planejei construir uma casa na árvore (sem ter nenhuma árvore ou quintal para colocar a ideia em prática); tantas vezes eu repetia as falas de Chris Chambers na esperança ingênua que minha melhor amiga também se lembrasse daquela cena e desse continuidade ao diálogo do filme – repetindo, assim, as falas de Gordie Lachance.

Isso nunca acontecia e eu demorei algum tempo para crescer e entender que a vida real não segue um roteiro. Muito provavelmente, foi de tanto assistir a esse filme que cresci com essa mistura de encanto e melancolia por qualquer paisagem cortada por trilhos de trem. Quando eu tinha nove anos, eu era tão parecida com eles que eu também não entendia que entrar em uma floresta para buscar o corpo de um menino morto não era uma aventura e sim um inconsequente e gigantesco passo, às cegas, rumo a um caminho perigoso e sem retorno. Mas, é assim que acontece, com todo mundo. Ou, pelo menos, é assim que deveria ser.  

Olhando para aqueles quatro meninos que entraram na floresta sem saber o que esperar dela – e, somente por não saberem é que sua jornada realmente aconteceu – me pego pensando sobre essa rápida e esquiva janela de tempo que existe, mas sobre a qual não somos avisados ou alertados ou sequer recebemos a cortesia de nos contarem sobre a sua existência. Um dia que chega para todo mundo, mas que ninguém sabe explicar quando e como será para você, quando chegar a sua vez. Uma hora sem número e um instante sem nome. Uma idade sem marca de tênis ou estilo de banda musical para identificá-la. Um portal que cruzamos ao lado de pessoas que não escolhemos, mas cuja parceria momentânea irá se transformar em companhia perene.

Aqueles que estavam conosco sob esse ponto de encontro exato, marcado pela latitude e pela longitude emocionais de crescer, aqueles com quem cruzamos essa invisível linha dos meridianos de tempo e espaço e que dizem: a partir desse momento, lugar e sensação, você não é mais criança e serão esses amigos, para sempre, os ponteiros que sinalizam e a balança que usaremos para julgar, pesar e medir os ganhos, as perdas e o emprego dos anos doados e recompensas recebidas. Será com eles e sobre eles que vamos nos comparar e amparar, pelo resto da vida. 

Nunca parei de me reencontrar com aqueles meus quatro amigos de infância e de revisitar aquela floresta e de rever, todas as vezes como se ainda fosse a primeira, o corpo do menino morto que, a cada reprise, permanecia deitado, machucado e à nossa espera, ao final da estrada abandonada que desembocava nos trilhos do trem. Porque eu, também, demorei algum tempo para amadurecer e entender que, mesmo não tendo feito tudo que eles fizeram no filme, quando eu era criança, eu podia sentir tão vividamente aquela experiência que ela é, sim, por direito e por delicadeza, também minha. O que só sentimos e desejamos, mesmo quando não realizado feito ação, se impregna em nossos tecidos e, do fundo dos nossos olhos, também nos constrói. 

Agora, Conta Comigo já não é mais, para mim, um filme de aventura. Depois que eu cresci, essa história – baseada no finíssimo e belo conto de Stephen King – me parece deixar emergir da tela sua camada mais profunda entre cada fala e cada olhar, em cada cena silenciosa, em cada paisagem que se altera, calma e ameaçadoramente, ao longo da trama – cada vez mais para dentro da floresta, cada vez mais para perto do âmago daquilo que somos, cada vez mais longe dos olhos dos outros e nus ao nosso próprio olhar e julgamento. Hoje, o filme me conta uma história de despedida.

Crescer é morrer. Morre a infância e nasce a juventude. Morre um jovem e nasce um adulto. O que nascerá, depois, de dentro da mulher adulta que sou, agora, ainda preciso esperar para saber o que será. E com quem será que seguirei afinando e redesenhando as rotas sobre a cartografia de envelhecer? Amigos e companheiros que começam, silenciosamente, a ficar grisalhos. Amigos e companheiros que continuarão comigo no corpo presente da lembrança, mas cujos rostos não acredito que verei novamente.

Uma certeza: que todos eles, de alguma forma, ainda se sentarão ao meu lado em casas da árvore imaginárias para tecer planos de viver e desfrutar um final de semana de férias e de sol. Comecei a assistir e a amar esse filme em 1993 e ele continua, até hoje, caminhando comigo. A história que, um dia, me ajudou a fazer amigos, agora, me ensina – forte, mas docemente – como fazemos para nos despedirmos e seguirmos pela vida levando, de alguns deles, somente aquilo que deles guardamos em nós. Eu acredito no cinema e, se um filme me pede para contar com ele, eu conto. Sempre.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.