O preço do amanhã
Proponho uma experiência: todas as vezes que você decidir comprar alguma coisa – seja um item de necessidade ou qualquer produto ou serviço que você queira adquirir – transforme em horas o preço a ser pago em dinheiro. Se você já é um trabalhador horista, é só adequar o quanto vale a sua hora de trabalho ao valor do produto. Se seu salário não é diretamente relacionado às horas laborais, divida o valor total de sua renda mensal pela média de horas de trabalho dentro do período de um mês para ter uma média de qual é o valor da sua hora trabalhada.
Sugiro fortemente que faça esse exercício com o objetivo de chegarmos a dois pontos muito relevantes, porém extremamente inquietantes: o primeiro ponto é entendermos que, se trabalhamos para ter o dinheiro para comprarmos o que precisamos e o que queremos, na verdade, a real moeda de troca para sobrevivermos são as nossas horas – e, dizendo de forma mais direta – essas horas são a nossa vida.
Em segundo lugar e, levando a discussão para longe da matemática e mais próxima de um questionamento filosófico, no fim das contas também precisamos admitir que se a hora trabalhada de determinada profissão vale X e a hora trabalhada de outra profissão vale 10X estamos diante de uma divisão de trabalho que dita quais horas de vida tem mais ou menos valor. Estamos diante de uma divisão de trabalho que determina quais são as vidas – quais são as pessoas – que valem mais e quais valem menos.
Se algumas pessoas precisam trabalhar 20 anos – algo em torno de 175.200 horas – para conseguirem trocar essas horas pelo dinheiro necessário para comprarem uma casa, por exemplo, enquanto outras pessoas poderiam ter a mesma casa – ou mesmo uma muito maior e mais confortável – pela metade desse tempo, ou, até mesmo, por um quarto dele, precisamos encarar a realidade do mundo e entender que a vida humana – que as horas efêmeras que temos e que passam e que não voltam – é precificada totalmente à nossa revelia e que algumas pessoas são tratadas como sendo superiores não só por terem mais dinheiro, mas por que as horas dessas pessoas, por que a vida dessas pessoas é mais valorizada do que a de outras.
Certamente, esse experimento tão simples que sugeri não consegue abarcar a imensa quantidade de variantes que impactam relevantemente essa relação entre trabalho, horas e vida. Existem as heranças (o trabalho acumulado e transformado em dinheiro e bens durante muitas décadas e até séculos e que beneficiam as próximas gerações), existem as divisões das profissões não só pelo nível das habilidades necessárias e do tempo de estudo para exercê-las, mas também pelo quanto elas podem ser consideradas símbolos de status em determinado momento da história. Enfim, meu objetivo ao propor esse breve e modesto – no entanto muito esclarecedor – exercício, é chamar a atenção para algo que é muito mais poderoso do que o dinheiro: o tempo.
O filme O preço do amanhã – 2011, Netflix – é uma distopia: um futuro insólito onde, aos 25 anos, as pessoas param de envelhecer – têm sua aparência congelada no tempo -, porém, no mesmo instante, um relógio começa a contar regressivamente em seus braços. Aos 25 anos, todas recebem a quantidade de horas, minutos e segundos que existem em apenas um ano e, a partir desse momento, passam a viver em função de adicionar horas de vida ao seu relógio, passam a ganhar o tempo da mesma forma que nós ganhamos dinheiro: com o trabalho. Sim, eu disse que todas as pessoas recebem a mesma quantidade de vida quando comemoram seu vigésimo quinto aniversário. No entanto, essa distribuição supostamente igualitária não proporciona, nem de longe, as mesmas condições de sobrevivência para todos os seres humanos dessa história.
A organização das cidades apresentada pela trama é feita de uma maneira que muito nos lembra nossa própria sociedade excludente: áreas muito populosas, onde quase todos os cidadãos têm menos de 24 horas em seus relógios e pequenas ilhas idílicas onde algumas pessoas abastadas contam com mais de um século brilhando sobre a pele, sempre escondida, de seus antebraços. Transitar entre essas regiões é uma questão quase impossível.
Os pedágios pagos em horas vão se tornando cada vez mais “demorados” quanto mais o viajante se afasta da periferia – onde cada segundo conta muitíssimo – e se aproxima de New Greenwich, a nova capital mundial que cobra de cada pessoa mais de cem anos de vida para que se possa passar pelos portões que protegem seus habitantes. Em clara referência ao meridiano de Greenwich – a linha imaginária que cruza o globo terrestre de norte a sul e que representa o marco zero para a contagem das horas – esse é o local onde as pessoas guardam seu tempo em bancos e, por isso, podem praticamente viver para sempre. Tornar-se um morador de New Greenwich apenas contando com esforço e méritos pessoais é uma utopia. Não foi através do trabalho que os personagens dessa trama conquistaram sua plácida imortalidade e seu obsceno conforto: eles nasceram “com tempo”.
Uma passagem que considero uma das mais interessantes do filme é quando a mocinha da história – uma mulher “rica” por ter muitas horas em seu marcador temporal – percebe, rapidamente, que o protagonista da trama não pertence ao lugar onde ele está. O motivo: ele anda correndo. No universo do filme, só os “pobres” correm. Repare que usei aspas na frase anterior, afinal, não existe dinheiro na trama e preciso usar essa palavra para me referir não aos que tem poucos recursos financeiros, mas àqueles que têm poucas horas piscando em cor verde em seu relógio vital.
Nesse universo distópico, somente aqueles que veem seus minutos de vida se esvaindo, segundo após segundo, em seus braços, precisam se apressar todos os dias. Precisam cronometrar o sono para não se atrasarem e consumirem seu curto tempo com descanso. Precisam correr porque o tempo cobrado por um café saltou de três para cinco minutos em apenas um dia. Seu tempo precisa ser integralmente usado para ganharem mais tempo.
Só onde moram esses cuja vida não lhes pertence existe a violência e o roubo de horas – o que acaba se tornando um assassinato –, pois quando a luz verde do cronômetro que pulsa sobre a pele se apaga, os “sem tempo” desfalecem e caem, mortos, exibindo em seu antebraço esquerdo uma macabra tatuagem cheia de zeros apagados onde antes os números iluminados representavam a vida.
Qual o preço que pagamos para comer amanhã? Para termos certeza de que teremos água chegando pelos canos, que teremos energia elétrica, que poderemos pagar o aluguel ou mantermos a casa própria que nos acolhe e protege? Qual o preço que pagamos para termos o que calçar, o que vestir, como mantermos nossa higiene? Qual o preço pagamos quando não confiamos nos serviços públicos e precisamos optar por educação, saúde, segurança e transporte privados? Qual o preço que pagamos pelo tempo para ler um livro? Para podermos assistir filmes? Qual o preço que pagamos pelo tempo que dispomos para dormir, para estar com quem amamos, para termos momentos para sonhar? O preço é o nosso tempo. O preço é a nossa vida. A nossa vida – única, frágil e irrepetível – está sempre submetida aos pesos e medidas e circunstâncias e valores que nos precedem e que nos controlam.
Para que não nos escape essa dádiva dividida em horas precisamos entender, o quanto antes, se para a sociedade e o mercado de trabalho, as leis e os impostos, os especuladores e os que demandam nossa atenção e mão de obra em horas extras, se fazemos parte do seleto grupo de pessoas cujas horas – e, portanto, a própria vida – valem muito e podem ser desfrutadas sem pressa e com andar vagaroso, ou se pertencemos à amorfa massa de descartáveis, cujo trabalho é mortificador, cujas horas valem pouco, cuja vida não vale nada.