Bemdito

Não foi hoje que Deus me viu

Aerofobia: quando voar não é sinônimo de leveza, mas de angústia
POR Rhaina Ellery

Escrevo este texto do céu. Muitos dormem feito anjos, enquanto eu torço para não encontrar com Deus esta noite. Sempre tive medo de voar e, diferentemente do pavor de encontrar uma barata dentro de uma coxinha, o pânico de avião é saber que o buraco acompanha a aeronave, como diria o gênio apavorado Ariano Suassuna. 

Um dos primeiros homens que ousou voar se estatelou no chão após contrariar nossa natureza terrestre. Pobre Ícaro, além da queda, se tornou sinônimo de desobediência. Não escutou o pai, caiu. 

O gatilho sempre espera o aviso de portas em automático para disparar o óbvio: que diabos estou fazendo sentada nessa geringonça? Procuro por meus pares, observo os potenciais medrosos e traço o plano: caso a coisa desande (literalmente), abraçarei o mais cagão e cairei sendo a mais corajosa dentre os desesperados. 

Não adianta meu marido dizer que o avião é o segundo meio de transporte mais seguro do mundo, perdendo apenas para o elevador, que enquanto estamos sobrevoando o país há milhares de pessoas fazendo o mesmo, pois basta um tremor para eu suar por poros nunca antes ativados. E gritar, claro. (Aproveito aqui para pedir desculpas a todos aqueles que acordaram com meu grito durante a última turbulência, mas alerto: outros berros virão). 

Já recebi indicações de novenas, soníferos e embriaguez, tudo para me acalmar, mas, na minha racionalidade primitiva, preciso estar com todas as minhas faculdades físicas e mentais em suas plenitudes, caso a queda livre aconteça. Se a aeronave fizer um pouso de emergência em alto mar, preciso estar sóbria e acordada para lembrar de todas as instruções: encontrar o colete debaixo do meu assento; inflá-lo; procurar as luzes de emergência; me controlar para não empurrar todos que estiverem na minha frente; e nadar. Meu Deus, nadar. Recuso o vinho pela terceira vez. 

Foi por medo de avião que eu segurei pela primeira vez a tua mão, lembro da música. Não é preciso ir além para saber que Belchior não tinha medo de avião. O verdadeiro medroso crava unhas na mão alheia, arranca a dentadas o polegar do desconhecido da poltrona ao lado, torce seu pulso e arregala os olhos procurando a paz no rosto dos comissários de bordo. Belchior só quis rimar mão com avião, seu medo não era real. Não na música. 

Lygia Fagundes Telles, sim, odiava voar. Contava que ao viajar para um congresso na Colômbia, em companhia de Clarice Lispector, o tempo fechou. Então, ela olhou firme para frente, se agarrou ao assento da aeronave e Clarice, que estava ao seu lado, pegou em seu braço e disse: Lyginha, a cartomante me disse que eu não morrerei em nenhum desastre, morrerei numa cama. Fique calma.

Nunca desejei tanto estar ao lado de Clarice. 

Percebi que a aerofobia aumentou depois que minhas filhas nasceram e ousei viajar sem elas. Antes de partir, minha culpa diz que devo ser punida com pena de morte pelos poucos dias de lazer sem suas companhias, acho que não vou voltar a tocar meus pés na terra e ficarei pelos céus. Ser mãe contraria toda a racionalidade do ser humano. Mesmo assim, estapeio a culpa e, tremendo, sigo viagem. Quando aterrissar no destino, sei que aproveitarei a bagaceira das férias sem rotina infantil e enfrentarei meu narciso ferido: sim, minhas filhas ficarão bem sem mim.

O comandante informa que estamos descendo. Em alguns instantes, poderei respirar fora da cabine pressurizada e a única pressão será encontrar o portão de saída do aeroporto. O desgraçado do vento faz a última piada e sacode com força minha covardia. Quebro com os dentes uma pastilha que eu nem percebi ter colocado na boca. Pousei. Não foi hoje que Deus me viu. Talvez na próxima viagem. 

Rhaina Ellery

Advogada pública, especialista em escrita e criação e mãe de duas meninas.