Bemdito

Os diários íntimos e a ética da individualidade

Os riscos e as delícias de escrever sobre si e para si
POR Paula Brandão

“É impossível capturar a vida se a gente não mantém diários.”
Sylvia Plath

Quando estamos profundamente sozinhos, confrontados com aqueles pensamentos que não são expressos nem na confissão religiosa, muito menos no divã do psicanalista, o papel branco de um caderno e a caneta podem nos desafiar a pensar o que fizemos do nosso dia. Mais que isso, temos a possibilidade de nos examinar com olhos côncavos, para dentro do abismo interno, e enxergar as nossas imperfeições como sujeitos de pura ambiguidade. A lauda alva tudo aceita, e rascunhamos as nossas incoerências, sem temor de avaliações do outro, movidos pelo profundo compromisso com a franqueza, que assume tons fortes de verdade e intimidade em diários.

Leitora ávida desses escritos, certa vez, me deparei, na Antropologia, com os Diários de Malinowski, postumamente publicados por sua esposa. Com anotações feitas entre 1914 – 1918, em polonês, sua língua mãe, o autor se desnuda mostrando-se profundamente humano, contrapondo-se aos textos canônicos que deixou para pesquisadores e estudantes. Ali, ao contrário daqueles livros para um amplo público no qual mostrava sua empatia com os “nativos” mailus e trobriandeses, revelou facetas pouco ortodoxas da sua personalidade como a angústia e desprezo de conviver com eles, seu egocentrismo, desnudando mais seus defeitos que suas virtudes.

Nunca essa dúvida, que circulou nos meios acadêmicos, me abandonou a cada vez que lia os diários de Virgínia Woolf, Susan Sontag, Sylvia Plath, Kafka, dentre outros. Eu teria o direito de ler aquelas declarações tão íntimas que não se pretendia a outro olhar? Que vestígios estamos farejando ao adentrar a vida íntima de nossas(os) autoras(es) prediletas(os)? O que nos move será a ideia de compreender que eles e elas são iguais a nós na imperfeição humana que nos une?

Quando li, porém, os diários de Virgínia Woolf, me deparei com escritos que não se perdem na subjetividade de seus relatos, mas são amparados profundamente pelo contexto histórico, social e literário em que vivia ao escrevê-los. Em 1915, ela estava num cenário de Guerra Mundial, e dizia, certa vez: “Creio que vão nos arrancar de nossa cama essa noite.” E revelava nas andanças pelas ruas, nesse cenário bélico, a dificuldade em encontrar um pedaço de chocolate, que passou a custar muito caro, ou mesmo adquirir um livro. Das dúvidas quanto aos livros que escrevia, quando dizia ter encerrado a obra Noite e Dia, e afirmava: “Ninguém que tenha muita inteligência, com exceção dos meus amigos, vai ler um romance tão longo.”

E o que dizer do arrebatamento das palavras de Susan Sontag, nos Diários de 1947-1963, quando revelava elementos dos seus relacionamentos e as reflexões travadas com seu próprio eu, para ressignificá-lo? Em determinada passagem, ela disse que Phillip, marido que foi deixado por ela, escrevia cartas cheias de ódio e autocomiseração, condenando-a por ter abandonado não só a ele, mas ao filho, e como ela não conseguia mais suportar a sua adulação frouxa e aceitação até dos seus defeitos. Ao mesmo tempo revelava a difícil convivência com sua companheira da ocasião:

“Viver com Harriet significava enfrentar um ataque a minha personalidade, minha sensibilidade, inteligência, tudo exceto meus livros que, em vez de serem criticados, são objetos de rancor.” Constatamos como as misérias humanas não são tão diferentes acima ou abaixo da linha do Equador. Saber de seus relacionamentos nos faz considerá-la uma companhia mais segura para carregar na bolsa.

Sylvia Plath já inicia seus diários – parte deles trancados em cadeado pelo marido para que fossem abertos mais recentemente – assim: “Talvez eu nunca seja feliz, mas esta noite estou contente.” Profundamente loquaz sobre seus sentimentos e estranhamentos a eles, vivia a extrair de suas palavras, a felicidade em escrevê-las. Seu penar e desgosto eram também sua salvação. Dizia: “Como posso explicar ao Bob que minha felicidade depende de arrancar um pedaço da minha vida, um fragmento de aflição e beleza, e transformá-lo em palavras datilografadas? Como ele poderia entender que justifico minha vida, minhas emoções ardentes, meu sentimento, ao passá-lo ao papel?”

Distantes desses grandes nomes, o diário foi uma prática muito usada por todas nós. Você já escreveu um diário? O que lembra dessa experiência de narrar a vida e torná-la menos medíocre ao escrevê-la? Eu tive diários ao longo de quase uma década. Eu escrevia diariamente e registrava pensamentos, tolices do cotidiano, dores, amores e alegrias. Eu os escondia sempre, mas minha mãe certa vez, não só encontrou e leu, como rasgou parte dele em que eu fazia desagravos a ela e a meu pai. Ninguém pode imaginar como senti aquilo. Talvez seja daquele lugar que me estranho lendo diários, ainda que publicados, mas não autorizados pelas escritoras.

Aliás, minha mãe nunca fez as pazes com esse mundo próprio que criei e de que ela ficara de fora. Um ambiente onde eu poderia escrever sem pesar ou medidas. Tanto que certa vez, quando mudei de cidade, juntei-os num guarda-roupa velho, e deixei todas aquelas palavras para trás. Quando voltei para buscá-las e não as encontrei, ela disse que os havia queimado, devido a traças e baratas que lá faziam moradia. Provavelmente era verdade, mas eu não sei se é possível entender o meu silêncio naquele momento. Cuidado com seus diários, caso os tenha, eles sempre tomam destinos que não autorizamos! Mas não abra mão de tê-los, sobretudo por ser uma das raras oportunidades de introspecção legítima.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).