Distanciamento real
O distanciamento social começou antes do vírus chegar
Simone Mayara
Simonempf@gmail.com
2020 é um desses anos que nem precisarão de palavras para serem reconhecidos. Como os anos de 1968 ou 1500 para os brasileiros. Bastará a menção a 2020 para que a imagem venha à cabeça: vírus, mundo parado, luto… Tanta coisa ruim. Mas nesse começo de 2021, que parece ser só uma continuação pós-créditos, um 2020.2, a palavra que tem me chamado mais a atenção é: distanciamento. Não, não é novidade, todo o protocolo para o tratamento de uma hecatombe causada por um vírus supertransmissível começa pelo distanciamento social. Mas aqui, falo de um distanciamento mais geral do que ficou explícito.
Primeiro, o distanciamento diminuído. Wuhan, na China, foi o primeiro epicentro e, ainda que esteja lá do outro lado do mundo, pra gente aqui na Terra de Santa Cruz o vírus não tardou a chegar. Há pesquisas, muito posteriores ao começo do caos, que afirmam que o vírus já estava aí pelo mundo antes da explosão chinesa. Porque o mundo, afinal, é pequeno. Essas doenças que viajam não são novidade da nossa Era, mas definitivamente apressamos o processo.
Depois que a distância do mundo diminuiu, aumentou a distância entre nós. Todos fechados. A verdade é que ninguém sabia ao certo o que deveria ser feito, ainda que não se tenha admitido, e, nesse cenário, impedir ou pelo menos diminuir o contato parecia o mais acertado. No Brasil inteiro, hospitais de campanha foram erguidos e negócios fechados. Aqui começa o distanciamento que mais me marca. Milhões e milhões gastos, parte desses milhões desviados. O distanciamento da moral. Mais gastos públicos, que nada mais são que gastos dos nossos tributos, enquanto o setor produtivo fechava. Empregos perdidos, mais gente jogada à miséria. A morte pela fome. O distanciamento do equilíbrio.
Protocolos feitos em salas de reunião repletas de tecnocratas não parecem levar em conta o fator humano. Fiquem em casa, sem prazo para sair e bombardeados por notícias ruins, números chocantes passando 24 horas, na televisão ou nos gadgets que estão na palma da sua mão. Quando as medidas começaram a ser relaxadas ou quando simplesmente não deram mais resultado porque naturalmente as pessoas não suportaram ficar amontoadas como ovelhas, então vimos a hipocrisia dos novos iluminados, políticos e alguns da classe artística (que agora nada têm com arte), pessoas que antes clamavam para que os outros ficassem em casa, mas que não se furtaram à oportunidade a viajar para lugares paradisíacos e fazer pequenas aglomerações, outra palavra bem 2020. O distanciamento da realidade.
Em 2021 o distanciamento continua, como protocolo, mas também como consequência. Os milhões públicos em hospitais que foram construídos e desmontados são lembrados agora quando os leitos acabam e vidas são perdidas de maneira brutal, sem ar. O drama da asfixia aproxima a dor das pessoas, todo mundo perdeu ou conhece alguém que perdeu alguém. Quando novas medidas de fechamento do setor produtivo e de distanciamento social são definidas por decreto, quando o estado decide o que é essencial para você nos próximos 14 dias, os tecnocratas se surpreendem com o não cumprimento. As ordens não parecem mais fazer efeito. E não por força de qualquer massa organizada, negacionista – palavrinha que passou a ser usada equivocadamente em 2020 – ou do lado político A, ou B.
O distanciamento da credibilidade levou ao distanciamento da eficiência e agora todos perdem. Enquanto o pico prometido muitas vezes só parece se aproximar, as restrições aumentam, já sem muita crença de quem as sofreu antes e não viu retorno. A distância da sensatez no discurso de quem fala demais na primeira pessoa do singular enquanto deveria dirigir uma nação parece aumentar a distância para o fim. Um mundo de distâncias diminuídas em que aflorou a distância da moral para aqueles que estavam tomando decisões. Decisões tomadas à distância do equilíbrio que aproximou muita gente da dor: o luto pela doença, o desespero pela perda do pão. A distância da realidade fez egos inflados se mostrarem como são, sem filtro das redes. A distância da sensatez afastou também a credibilidade.
Culpa de quem viveu desde antes da praga no distanciamento social do comum, a torre de marfim está distante de todos nós.
Simone Mayara é Analista Política no Instituto Livre Mercado. Pode ser encontrada no Instagram.