Pandemia: Quem vai lavar a louça?
A opressão dentro de casa e o desassossego cotidiano das mulheres em pandemia
Paula Brandão
paulafbam@gmail.com
Como você amanheceu hoje, mulher? Estamos quase saindo do segundo lockdown, após 18 dias do decreto estadual no Ceará, exauridas física e mentalmente, solitárias e condenadas a viver no cativeiro de nossas casas, na era das mais avançadas tecnologias. Quando eu digo nós, refiro-me a mim e à boa parte daquelas que estão desfrutando desse espinhoso lugar, que, nem de longe, olhando a nossa própria dor, cogitamos ser um lugar de privilégio.
No período em que vivemos uma das maiores crises sanitárias de todos os tempos, passamos agora pela segunda onda da pandemia, e os grupos historicamente desprotegidos de direitos sociais continuam sendo os mais vulneráveis: as mulheres da periferia, negras, moradoras de rua, trabalhadoras domésticas, cozinheiras etc. Essas mulheres não têm escolha, e não podemos ignorar nossas diferenças de classe, raça-etnia e geração.
Mas circunscritas a esse pequeno recorte das camadas médias urbanas, talvez o que tem refletido um estado permanente de angústia, depressão e sofrimento é o fato de que as mulheres consideravam já ter colhido os frutos da revolução sexual e rompido, definitivamente, com o paradigma da domesticidade. Mas a necessidade premente de isolamento social trouxe de volta essa questão e não houve tempo de maturá-la. As mulheres passaram a acumular o trabalho remoto e grande parte daquele trabalho de casa, e com os filhos.
Michelle Perrot, em A História das Mulheres, diz que o trabalho doméstico é indispensável para a sociedade, mas nunca foi, de fato, dividido entre homens e mulheres. E os instrumentos femininos continuam os mesmos: o pano, a vassoura, o esfregão, o rodo e a pá. No entanto, compreendo que a família também passou por grandes transformações e podemos dizer que é uma ambiência de afetos, mas também de conflitos, disputa de projetos e interesses. Nessa queda de braço, pesquisas já apontam que os homens estão “bombando” seus currículos, produzindo loucamente. Eu pergunto: quem está lavando os pratos?
Em pesquisa que fiz na pandemia do ano passado, com 370 fortalezenses, a maioria com idade entre 30 a 45 anos, casadas, elas me revelaram que estão exaustas, pois o fato de ficarem em casa trouxe um grande desassossego em seus cotidianos, aumentando o seu trabalho, que era externo, associado ao doméstico, com ênfase no acompanhamento do ensino remoto dos filhos. Quando interpeladas sobre como se sentiam na pandemia, havendo opções múltiplas, revelaram os seguintes sentimentos: 45,4% (168) diziam estar ansiosas; 36,2% (134) angustiadas; 34,6% (128) exaustas; 17,8% (66) nervosas; 16,2% (60) tristes.
As mulheres se sentem terrivelmente oprimidas dentro de suas casas e revelam que, por mais que os braços tenham aumentando, os trabalhos domésticos não foram divididos igualmente. 41,6% (154) disseram que se sentem sobrecarregadas, somando as atividades domésticas com o trabalho remoto. Já 28,4% afirmam que estão bem, desenvolvendo atividades do lar; 5,4% (20) dizem que o trabalho remoto é motivo de angústia; 4,1% (15) afirmam ser motivo de desespero. Uma delas respondeu: “Me sinto sobrecarregada, pois temos o mesmo trabalho, mas com relação à casa faço quase tudo sozinha, enquanto o trabalho remunerado é igual para os dois.”
Se compreendermos o recorte regional – ou seja, são nordestinas -, ainda encontramos o discurso da divisão sexual do trabalho. Foi assim que, em um dos grupos de mães no Whatsapp, uma profissional liberal reconhecida em seu trabalho, mãe de cinco filhos, disse que na pandemia o seu marido, “coitado”, tentou ajudá-la, mas tudo ficava mais bagunçado. Ela diz ter repensado sua vida e que, mesmo depois da pandemia, ficaria mais em casa, cuidando dos filhos. Não podemos deixar de tensionar a naturalização dos papéis sociais, pois, se não o fizermos, corremos o risco de criarmos nossos filhos bem distantes da cozinha. Lilia Schwarctz, em Quando acaba o século XX, ratifica: “Nós, mulheres, por exemplo, temos um conhecimento distinto dos homens quanto ao cuidado da casa. Não há nada de biológico nessa constatação; essa é uma função que nos foi impingida histórica e culturalmente de modo a aparecer ‘natural’, o que não é.”
Para amenizar os temores que temos no peito neste momento, quero trazer uma boa notícia: 41,6%, disseram que o companheiro dividia as atividades domésticas igualmente; e 36,8%, que o companheiro ajudava em algumas atividades. Tem macharal lavando panela, sim! Ainda é pouco e representativo de um segmento social? Talvez! Mas aproveitem o ambiente aquiescente atual e passem a limpo essa conduta, para que os homens entendam, em definitivo, que mulher nenhuma veio ao mundo para limpar as sujeiradas deles!
Paula Brandão é professora da UECE, doutora em sociologia e pesquisadora na área de gênero, gerações e sexualidades. Está no Instagram.