Vêm aí dias piores
A aflição de recusar falsos otimismos em respeito à verdade da dor dos outros
Jáder Santana
jaderstn@gmail.com
Circulou pelas redes sociais nos últimos dias uma guerra fria de argumentos a favor e contra o otimismo. Tudo começou quando o usuário Breno de Carvalho, que se descreve como “criador de conteúdo com mais de 3.100 alunos”, publicou em seu Instagram um “post otimista no meio do caos” intitulado “7 motivos para acreditar que tudo isso está acabando.” Na tarde deste domingo, 21, o autor avisou que mais de 1,4 milhão de pessoas já havia compartilhado sua postagem e que muito em breve falaria com seus 124 mil seguidores sobre “engajamento e viralização”.
Em seus argumentos para o otimismo, o autor usa dados dos Estados Unidos para sustentar que a mesma tendência de diminuição dos casos de contaminação deve se repetir por aqui. Projeta que até o final de abril o Brasil terá aplicado mais de 110 milhões de doses, o que cobriria pelo menos 25% da população. Encerra sua mensagem com cinco dicas para os próximos dois meses – mantenha distanciamento social, mas não deixe de trabalhar, estudar e viver; use máscara e lave as mãos; evite ler e espalhar notícias pessimistas; cuide da sua saúde mental; tenha fé.
Perdidos entre o desejo de acordar pela primeira vez em tantos dias com notícias que nos deem algum alento e a responsabilidade de encarar sem rodeios a realidade sombria que nos cerca, somos lançados de um extremo ao outro. Se a publicação contribui para a felicidade das horinhas de descuido, a realidade e a história recente nos alertam de que o autoengano e a desinformação formam combinação explosiva no contexto de carnificina em que estamos imersos. Como resposta ao otimismo abundante de Breno, diversas vozes se somaram em defesa do pessimismo ou, como preferiram chamar, de uma visão realista e desapaixonada do futuro próximo.
Vamos aos fatos. O Brasil vê quase diariamente novos recordes na média móvel de mortes. Enfrentamos o maior colapso do sistema de saúde da nossa história, com leitos de UTI que registram taxa de ocupação acima de 90% em 16 estados. Em três deles, há mais pacientes do que leitos. A previsão de que vacinaremos 25% da população até o fim de abril é delirante. Ao atraso proposital e criminoso na compra das vacinas se soma a lentidão na compra de insumos e o instável sistema de distribuição para os estados. Nossa diplomacia nunca esteve tão debilitada, e somos vistos como párias em cenário internacional de negociações que envolve ponderação, poder e confiança. Começamos 2021 com mais miseráveis do que em 2011. São 27 milhões de pessoas em pobreza extrema, mais que a população total de Portugal e Grécia juntas. Temos um executivo que se nutre de mentiras e que instaurou uma estrutura que caça e assedia seus opositores.
Descobriu-se que Breno foi eleitor de Bolsonaro. Em tuíte de junho do ano passado, escreveu “Ele se perdeu completamente… Eu confesso que votei no Bolsonaro e não me arrependo do voto mas confesso que estou extremamente desapontado.” Em fevereiro último, publicou em seu Instagram o letreiro “Perdoando Hitler”, para falar de uma ex-prisioneira de Auschwitz que teria perdoado o líder nazista. Encerra sua reflexão sobre o assunto recomendando: “faça um escâner dos perdões pendentes e libere suas raivas do passado. Assim você pode deixar de ser prisioneiro da sua mente.” Em seu Instagram, Breno oferece o que precisamos, loções milagrosas em forma de palavras de esperança. Tenha fé, pede. Horas depois, anuncia live sobre engajamento e viralização.
Por coincidência, folheei nos últimos dias o livro O tempo adiado e outros poemas, antologia de textos da escritora austríaca Ingeborg Bachmann, que já na infância precisou lidar com a adesão do pai, um professor de escola, ao Partido Nazista. Sua poesia é repleta de uma desesperança atmosférica que reflete a experiência da autora em meio à imolação de vidas e histórias de sua época. Bachmann teria assistido, ainda criança, à marcha das tropas nazistas por sua cidade, impressionando-se com a vulgaridade da linguagem dos soldados e com a desolação que seguia seu rastro. O primeiro poema do livro, O tempo adiado, é um registro dessa imagem.
“Vem aí dias piores./ O tempo adiado até nova ordem/ surge no horizonte”, escreve, para em seguida desenhar versos de potente intensidade visual: “Em breve deves amarrar os sapatos/ e espantar os cães para o charco.” Alguns versos depois, continua. “Do outro lado afunda tua amada na areia/ ele sobe-lhe pelo cabelo esvoaçante,/ ele corta-lhe a palavra,/ ele ordena-lhe silêncio,/ ele encontra-a mortal/ e pronta para a despedida/ depois de cada abraço.” Quem fica, afunda-se na terra. A morte é a despedida final depois de cada abraço
Amarrar os sapatos, preparar-se para fugir, espantar os cães para que não sejam mortos. Tentar escapar. Não há uma razão para otimismo, nem sete motivos para acreditar que tudo está acabando. Impotentes nesse cenário de dor e morte, só nos resta, como a Bachmann, tentar escapar, sobreviver.
Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. Está no Instragam e Twitter.
O tempo adiado
Vêm aí dias piores.
O tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Em breve deves amarrar os sapatos
e espantar os cães para os charcos.
Pois as vísceras dos peixes
esfriaram no vento.
A luz da anileira arde pobremente.
Teu olhar pressente a penumbra:
o tempo adiado até nova ordem
desponta no horizonte.
Do outro lado afunda tua amada na areia,
ele sobe-lhe pelo cabelo esvoaçante,
ele corta-lhe a palavra,
ele ordena-lhe silêncio,
ele encontra-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.
Não olha para trás.
Amarra teus sapatos.
Espanta os cães.
Joga os peixes ao mar.
Anula a anileira!
Vêm aí dias piores.
Serviço
O tempo adiado e outros poemas
Ingeborg Bachmann
208 páginas
Editora Todavia, 2020
Preço: R$45,90